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O acendedor de lampiões

« Madgermanes »: em Moçambique, a injustiça do tratamento dos retornados da Alemanha de Leste

2 Mai 2017 , Rédigé par David Brites Publié dans #Moçambique, #Identidade, #História

A paísagem urbana em Moçambique traduz a herança do regime socialista (1975-1990) na vida política moçambicana e nas mentalidades. Aqui no norte, em Nampula (em cima) e em Cuamba (a seguir).

A paísagem urbana em Moçambique traduz a herança do regime socialista (1975-1990) na vida política moçambicana e nas mentalidades. Aqui no norte, em Nampula (em cima) e em Cuamba (a seguir).

Um olhar sobre os Madgermanes, os trabalhadores moçambicanos que foram enviados na Alemanha de Leste entre 1979 e 1990 para ser formados e empregados. Um injustiça relativa aos retornados moçambicanos permanece.

Tornado independente, o Moçambique, dirigido logo em 1975 pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) dirigida por Samora Machel (até sua morte, em 1986), virou-se diplomaticamente e comercialmente do lado dos países que tinham apoiado a luta pela independência, em particular Cuba e a União soviética. As trocas tornaram-se importantes entre o governo marxista de Maputo e os países do bloco de Leste, por exemplo o Viet-Nam, ou a Polônia. Com a República Democrática Alemã (RDA), criada em 1949 no âmbito da Guerra Fria entre os Estados-Unidos de América e a União soviética, se organisa a partir de 1979 a chagada de Moçambicanos que devem ser formados e trabalhar na Alemanha de Leste. Mas uma polémica surgiu quando voltaram, em 1990, esses trabalhadores moçambicanos. Uns elementos de esclarecimento.

Os países dirigidos por regimes ou governos socialistas no início dos anos 1980. Em vermelho, a República democrática alemã e a República popular de Moçambique.

Os países dirigidos por regimes ou governos socialistas no início dos anos 1980. Em vermelho, a República democrática alemã e a República popular de Moçambique.

O acordo de intercâmbio de 1979

Em 24 de Fevereiro de 1979, ou seja, dez anos antes da queda do muro de Berlim, o presidente do Conselho do Estado da então República Democrática Alemã (RDA), Erich Honecker, visitou a cidade de Maputo para assinar com Samora Machel um acordo de intercâmbio de trabalhadores contratados; este previa o emprego temporário de trabalhadores moçambicanos em empresas estatais da RDA. Naquela altura, ambas as partes sublinham o caráter amigável e cooperativo deste tratado. No âmbito deste tratado, vieram à Alemanha entre 16.000 e 20.000 trabalhadores moçambicanos, e, quando o muro de Berlim caiu, em 9 de Novembro de 1989, ainda uns 15.500 Moçambicanos se encontravam na Alemanha de Leste, trabalhando em 193 empresas. Eles acabaram de voltar em Moçambique em 1990.

A verdade da amizade exprimida pelo tratado de 1979 não se resuma à uma sincera vontade de cooperar entre países socialistas. Dos dois lados, há interesses específicos: Moçambique quer então divisas para pagar o enorme déficit acumulado ao longo dos anos, e o governo espera que os trabalhadores formados na Alemanha ajudarão depois, uma vez que terão regressados, a economia moçambicana a levantar-se; a RDA, por sua vez, precisa urgentemente de mão-de-obra barata. Os Madgermanes é o nome que foi dado a esses trabalhadores pelos seus compatriotas.

Vinte-seis anos depois, grande parte dos trabalhadores moçambicanos não foi reintegrada socialmente, pois eles nunca receberam os salários previstos na âmbito do intercâmbio. Eles continuam vivendo numa certa pobreza, porque a RDA só deu para eles 40% dos seus salários; 60% do salário que ganhavam era deduzido e enviado para Moçambique. Posteriormente, deviam ter recebido esta quantia sob forma de pensões. Os Madgermanes acusam o Estado moçambicano, e pela essa via o partido no poder, a Frelimo, de se terem apoderado do dinheiro destas pensões ou de muito pouco terem feito para solucionar a situação. Desde os anos 1990, eles manifestam pelo menos uma vez por semana, em Maputo, para reclamar a pensão que ele merecem e que lhes foi prometida quando eles foram e estavam na Europa. Em vão.

Em Berlim, num dos sítios do antigo Muro de Berlim.

Em Berlim, num dos sítios do antigo Muro de Berlim.

Uma responsabilidade do Estado moçambicano(?)

Logo em 2002, o governo alemão tinha mostrado a prova que o dinheiro foi transferido ao Estado moçambicano, e que é este que não o devolveu aos ex-emigrantes. Eles deram 74,4 milhões de dólares em salários e 18,6 milhões em cotizações de Segurança social em Moçambique, convertido de 5.000 dólares para cada trabalhador. Do seu lado, o governo moçambicano fala de uma quantia bem menor que deva devolver aos ex-emigrantes, e que já devolveu uma parte, reduzindo os valores que deva aos Madgermanes uns 370-550 dólares.

Em Julho de 2004, cerca de 40 Madgermanes ocuparam pacificamente, alguns dias, a embaixada alemã em Maputo, de onde saíram então os funcionários e cujos serviços foram encerrados. É neste contexto que, em 14 de Julho, a embaixada alemã em Maputo falou oficialmente que considera as reivindicações dos ex-emigrantes moçambicanos na antiga RDA uma « questão encerrada », remetendo a « solução harmoniosa e duradoura » do conflito para as autoridades moçambicanas. Um comunicado foi então distribuído, no qual estava escrito: « Segundo as informações de que a Alemanha dispõe, o governo da RDA cumpriu todos os compromissos constantes do acordo sobre o emprego de trabalhadores moçambicanos. » O documento acrescenta que os compromissos decorrentes desse acordo, que passaram da antiga RDA para a República federal alemã, também foram « plenamente cumpridos » e não foram « objecto de contestação por parte de Moçambique ».

Na mesma base, o governo alemão considera que o referido acordo de 1979 extinguiu-se com a desaparecimento da República democrática alemã, em 3 de Outubro de 1990, razão pela qual as autoridades alemãs defendem que as exigências dos trabalhadores moçambicanos sejam tratadas internamente, ou seja: pelo executivo moçambicano. Ainda hoje, os ex-trabalhadores moçambicanos acusam o governo alemão de conivência com o Estado moçambicano, mas desde que os Alemães reafirmou não ter mais responsabilidade neste assunto, as reclamações dos retornados moçambicanos concentraram-se só sobre as autoridades moçambicano. Logo desde o início da década de 90, os ex-emigrantes passaram a reivindicar ao governo o pagamento dos descontos que efectuaram pela Segurança social e outras verbas.

A primeira reunião de protesto ocorreu em Dezembro de 1990 e exigiam o pagamento dos seus salários. A segunda foi em Abril de 1991 e reclamavam a rápida entrega das suas bagagens. Em Janeiro de 1992 ocorreu a terceira, quando uns mil Moçambicanos reclamaram, em Maputo, o dinheiro não devolvido. Os retornados denunciaram muito cedo o Ministério do trabalho, que tinha gerido o dinheiro transferido pela RDA. Para ver um exemplo de marcha dos Madgermanes em Maputo: Marcha dos Madgermanes em Maputo, pelo olho da TIM. O governo de Maputo apenas reconhece uma dívida de 6,3 milhões de euros, cujo pagamento já decorra, contra um último valor apresentado pelos Madgermanes de cerca de 18 mil milhões de euros(!) ou seja, uma diferença abissal...

Moçambique tem uma dívida e relação a esta gente a quem foi prometido um papel importante na reconstrução do país. As formações que eles receberam devia traduzir-se por criação de empregos na volta ao Moçambique. Foi o próprio governo moçambicano que concluiu, com Berlin-Leste, que os moçambicanos só receberiam 40% dos seus salários em espécie, na Alemanha, enquanto os outros 60% seriam devolvidos diretamente quando voltariam em Moçambique. Naquela altura, as esperanças dos trabalhadores eram grandes, no contexto de guerra civil e de fome que havia em Moçambique. E neste assunto como em vários outros, o Estado moçambicano não assuma as suas responsabilidades na defesa dos direitos dos seus cidadãos.

Maputo, vista na Baixa.

Maputo, vista na Baixa.

Uma memória e um orgulho desprezados pelo Estado moçambicano

Além das reclamações relativas ao salário destas pessoas que nunca lhes foi devolvido, é preciso lembrar-se da vida difícil que eles conhecerem. Eles ainda estão numa situação social muito complicada. Totalmente enganados, a condição deles é um assunto tabu do debate público em Moçambique. Simplesmente, ninguém fala deles. Enquanto eles ainda falam muito bem alemão, um saber que poderia ter sido reutilizado, pelo benefício da própria economia moçambicana. Aliás, os Madgermanes são orgulhosos do tempo que passaram na Europa; lá, dizem eles, o tratamento foi complicado, por causa do racismo, mas eles aprenderem muito sobre o seu próprio país. Eles preferiram sair da Alemanha de Leste para voltar em Moçambique, mas agora, até nas manifestações deles pode-se ver bandeiras da ex-RDA.

Cada um tinha projetos mais ou menos ambiciosos, a voltar da Europa: constituir artesanatos e lojas de carpintaria, por exemplo. Eles traziam roupa bonita, televisões e outras tecnologia. Mas as esperanças acabaram quando entenderam que o governo não devolvia o dinheiro merecido. E as formações adquiridas na Europa não foram assim tão adequadas na economia moçambicana, o que traduziu-se por uma taxa de desemprego muito alta nos Madgermanes. Em particular aqueles que tinham trabalhado em indústrias automóvel, que são inexistentes em Moçambique. Aliás, as primeiras protestações destes ex-emigrantes foram organizadas frente ao Ministério do Trabalho, para protestar contra esta realidade.

Bandeira da Alemanha de Leste (1949-1990).

Nem vamos falar da inexistência deste assunto no debate público moçambicano: é simplesmente uma vergonha. Mas além disso, o direito desta gente a manifestar em liberdade é muito limitado. Até às vezes são vítimas de repressão da polícia, com atos de violência choquantes. Tratamento simplesmente inaceitável, que não só leva a questão do tratamento dos Madgermanes, como também a da qualidade de trabalho da polícia moçambicana em geral.

Esta história toda ainda não acabou. Em 12 de Setembro de 2015, houve uma manifestação de Madgermanes e de familiares deles em Berlin, para pedir explicações sobre o andamento do dossier dos ex-emigrantes. Pior, na Primavera de 2015, a associação dos ex-Trabalhadores da antiga República Democrática da Alemanha (ATRDA) denunciou as palavras do então ministro alemão das Relações Exteriores, Frank-Walter Steinmeier, que afirmou não saber de nada e não ter conhecimento dos desacordos entre os Madgermanes e o governo moçambicano. Zeca Cossa, presidente da ATRDA, afirmou naquela altura: « De certeza que tem de haver uma manifestação à porta de casa dele para saber se há conhecimento da causa ou não. » Aqui em Maputo, os protestos continuam, apesar da repressão e da indiferença das autoridades públicas. Sendo realistas, temos que reconhecer que este dossier vai provavelmente acabar na « lata de lixo » da História.

A memória destes Madgermanes tem, claro, muitas complexidades, como podemos o adivinhar, relativamente à presença de trabalhadores negros num âmbito de troca entre repúblicas socialistas onde as pessoas não estavam acostumadas a tratar com Africanos. As experiências foram ricas, ricas profissionalmente como também nas suas dimensões humana e cultural, mas também marcadas pela então xenofobia ambiente contra pessoas negras. Em 2013, o fotógrafo alemão Malte Wandel organizou um livro de fotografias sobre esses trabalhadores, recebendo então um prêmio artístico alemão (medalha de prata do Deutscher Fotobuchpreis 2013); este livro premiado (cujo título é: Einheit, Arbeit, Wachsamtkeit, em português « Unidade, Trabalho, Vigilância ») ilustra uma memória da RDA muito diferente da europeia. A vida era dura, mas eles aprenderam muito, incluído quando caiu o Muro de Berlin; para essa gente, era a prova que num mundo livre, podia-se ir manifestar e protestar. Eles sabem disso, pois já faz 26 anos que protestam para um mínimo de justiça e de reconhecimento, sem sucesso.

Em Berlim, a herança do tempo comunista.

Em Berlim, a herança do tempo comunista.

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