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O acendedor de lampiões

Em África, como ultrapassar o choque da colonização e o mito da convergência pelo desenvolvimento? (2/2) « Quando tudo se desmorona » a cerca de uma leitura linear do progresso humano

2 Février 2024 , Rédigé par Jorge Brites Publié dans #Economia, #História, #Identidade, #África

Gravura de 1884 na revista alemã Gartenlaube.

Em 15 de Novembro deste ano, será o 140° aniversário do lançamento, em 1884, da conferência de Berlim, que consagrou a partilha da África pelos Estados europeus. Organizada por iniciativa do chanceler alemão Otto von Bismark, ela concluiu-se somente em 26 de Fevereiro de 1885 pela assinatura de vários tratados entre Estados europeus. Embora não foi a única conferência do final do século XIX dedicada ao assunto (podemos por exemplo mencionar a de Bruxelas em Setembro de 1876, sobre o vale do rio Congo), esta foi particularmente emblemática, pois reuniu a volta da mesa todas as potências coloniais europeis da altura. 140 anos mais tarde, os países do continente africano acederem à sua independência (pelo menos teoricamente), mas sob fronteiras, regimes políticos e sistemas econômicos que não têm mais nada a ver. As suas referências culturais e as suas organizações sociais foram a maioria das vezes mudadas profundamente, conforme processos iniciados durante a colonização e depois acentuados pela globalização.

Neste contexte, convem ter em mente a violência e o caráter pluridimencional daquelas transformações para entender sobre quais bases os países africanos envolvem o seu futuro desde os anos 1960, década na qual a maioria acederem à independência. Para entender também com quais trunfos e quais escolhos eles devem compor hoje em dia, entre as ingerências políticas e os interesses econômicos estrangeiros por um lado, e a reconstrução de identidades muito tempo humiliadas e desprezadas por outro lado. O estado das sociedades africanas é ainda mais complexo porque o sistema das relações internacionais, o capitalismo globalizado e a ajuda pública ao desenvolvimento constituem uma mistura que mantem, no continente, o mito de uma recuperação, de uma convergência da África em relação à Europa. Ou seja, uma visão linear e etnocentrada da História, segundo a qual o Estado-nação moderno, a economia de mercado e a exploração da natureza seriam o único caminho do progresso humano.

Pode aparecer surpreendente que o processo colonial conseguiu, em menos de um século de ocupação quase-total do continente, a resultados tão importantes. Certamente, a presença europeia nas costas africanas começa logo nos séculos XV e XVI, e temos que guardar em memória as consequências econômicas e demográficas do tráfico negreiro transaltântico, que demorou três séculos; mas a colonização como fenômeno político na era moderna estende-se num tempo finalmente bastante curto em relação à História. Contudo, as suas consequências foram profundas e pluridimencionais. Os países africanos devem hoje em dia compor com uma concepção ocidental do Estado, do progresso, da natureza, da economia. Esta concepção só pôde impor-se baseando-se na desvalorização das crenças e das concepções não-ocidentais e não-capitalistas, da qual a globalização assegura a continuidade (Em África, como ultrapassar o choque da colonização e o mito da convergência pelo desenvolvimento? (1/2) A herança de uma empresa de desvalorização sistemática e interiorizada). Também graças ao colapso dos sistemas e dos paradigmas políticos, econômicos e culturais em vigor em muitas sociedades. Aquele colapso, parcial ou total, era justificado pelas potências coloniais em nome de uma « missão civilizadora »: a ideia de uma recuperação, de uma convergência da África em relação à Europa, cuja marca ainda se vê nas políticas de ajuda pública ao desenvolvimento e no sistema capitalista.

Quando « tudo se desmorona »: modelos políticos, fronteiras…

Tal como os Estados latino-americanos que adquirirem a independência no século XIX, os países africanos conservaram, após a partida dos Europeus, as fronteiras da administração colonial em nome do princípio de direito internacional uti possidetis juris – também chamado princípio de intangibilidade das fronteiras. Mas temos que guardar em memória que essas mesmas fronteiras foram decididas e traçadas conforme a única vontade das potências europeias na ocasião de diferentes congressos internacionais no final do século XIX, sem consideração, para a maioria dos casos, nem dos componentes humanos locais, nem da história do continente. Um vez sob controlo dos Europeus, as fronteiras administrativas (por exemplo, na África ocidental francesa) foram primeiro pensados para optimizar a exploração dos territórios colonizados, sem nenhuma coerência étnica ou cultural. Pelo contrário, tal como as estratégias operadas pelos esclavagistas no continento americano (que evitavam misturar os escravos de mesma étnia, para evitar que eles organizassem-se), provavelmente as potências coloniais procuraram, na África, quebrar qualquer coerência entre a identidade etnolinguística e a entidade administrativa colonial. Uma estratégia que podemos constatar em quase todas as colónias, com excepções uns reinos ocupados tardiamente, como Marrocos, Etiópia, Lesotho ou Eswatini, os quais, aliás, recuperaram a maioria das vezes a sua independência sob um regime monárquico.

Bandeirola no centro de Beira, Moçambique.

O traçado das fronteiras herdadas da colonização constitui em si uma arma terrivelmente perversa. De fato, os países africanos colonizados no século XIX (qualquer seja então o seu modo de organização: confederação tribal, proto-Estado, reino, etc.) não foram os que acederem à independência após a Segunda Guerra mundial. E compor com esta realidade induz imensas dificuldades para comunidades que acabaram às vezes reunidas sem « fazer sociedade » de forma óbvia – ainda menos quando o processo colonial alimentou as rivalidades favorecendo tal ou tal componente. Se o princípio de intangibilidade das fronteiras é suposto evitar os conflitos territoriais e os separatismas, força comunidades a partilhar a sua soberania em conjuntos territoriais nos quais elas não escolherem de pertencer, e a partilhar as suas riquezas. O próprio e simples fato de ultrapassar esta herança questiona, pois imagina-se mal que seja possível no âmbito de um « Estado-nação » tal como o concebemos ordinariamente. As origens da classe dirigente, o peso demográfico das diferentes componentes etnolinguísticas ou religiosas, a localização das riquezas naturais, as redes de poder e de clientelismo, são tantos parâmetros que fazem desses novos Estados auténticos barris de pólvora. Até a escolha da capital, que foi muitas vezes o fato das potências coloniais, criou logo desequilíbrios de poder entre comunidades. Além disso, a composição dos novos Estados obriga muitas vezes os seus dirigentes a manter, para preservar um parecer de unidade, a língua da antiga potência ocupante (Desenvolvimento e identidades na África: a chave não entra na fechadura!).

Não se pode realmente cobrar os líderes independendistas por esta realidade. Primeiro porque as independências foram o resultado de compromissos – embora oficialmente as potências europeias proclamavam o direito à autodeterminação dos povos para a Polônia ou a Checoslováquia na altura em que milhõe de Africanos e Asiáticos não podiam aproveitar eles mesmos deste direito. Segundo porque as próprias lutas pela independência necessitaram uma coesão à escala das colónias inteiras. Vemos bem, por exemplo, o impasse que teria constituida a luta pela independência, para as forças da Frelimo (a Frente de libertação de Moçambique) se elas só tinha tida como objetivo a emancipação das comunidades do sul do país – deixando os Portugueses contra-atacar desde todos pontos da colónia. (Pode-se lembrar, neste assunto, que a revolta de Mueda, na província  septentrional moçambicana de Cabo Delgado, em 1961, acabou com a repressão pelas forças coloniais portuguesas; conduzida pelos Makondés, uma etnia que domina os planaltos à fronteira tanzaniana, ela guardou uma dimensão estritamente local. A luta pela independência tomou uma outra dimensão a partir de 1964, dois anos após a criação da Frelimo que fusionava vários movimentos de resistência à colonização. Os Makondés, assumindo um lugar importante no braço armado da Frelimo, atuaram um papel determinante na guerra de descolonização. Aliás, o atual presidente moçambicano, Filipe Jacinto Nyusi, tal como o tio dele, o qual foi o primeiro ministro da Defesa pós-independência, são daquela etnia.) Para conseguir, as revindicações (sejam elas por luta armada ou não) tinham que traduzir as aspirações dos colonizados, da forma a mais ampla possível.

Finalmente, convem lembrar que os próprios  líderes independentistas podem ter sido influenciados pela concepção do Estado, da admistração e dos serviços públicos, pois muitos deles vivirem e realizaram os seus estudos na Europa ou nos Estados-Unidos, ou nas escolas da metrôpole – o que era bastante inevitável, pois só o sistema escolar autorizado pela potência colonial permitia uma ascenção política e uma instrução. Provavelmente, esses líderes viram os seus conceitos, a sua visão do mundo e os seus valores influenciados pela sua estadia no estrangeiro, pela sua formação acadêmica, pelos seus encontros e pelo próprio objeto das suas revindicações – ainda mais quando eram eleitos deputados no âmbito da metrópole para representar a colónia, como foi o caso, por exemplo, de Leopold Sédar Senghor e de Félix Houphouët-Boigny em França.

Contudo, o continente não foi isento de debates sobre a estrutura das entidades que acederem à independência. Pode-se notavelmente mencionar a tentativa de federalização do Mali em 1959 e 1960, a qual regrupou o Senegal e o Mali atuais, e que correspondia ao desejo de personalidades, a primeira delas sendo Léopold Sédar Senghor, que era defendedor de um modelo associativo de União de Estados confederados – solução a qual era oposto Félix Houphouët-Boigny na Costa de Marfim e, no Senegal, uma parte dos independentistas. Aliás, outras uniões foram tentadas ou iniciadas depois, por exemplo a confederação de Senegâmbia entre 1982 e 1989, ou ainda, no âmbito do movimento panárabe, a tentativa de federação entre a Líbia de Muammar Khadafi, o Egipto de Gamal Abdel Nasser e o Sudão de Nimeiry (consagrada pela assinatura de uma Carta revolucionária, em Tripoli, em Dezembro de 1969), e a aproximação entre a Tunísia e a Líbia em 1973-1974. As organizações políticas sub-regionais, como a União do Magrebe Árabe (UMA) criada em 1989, revelam-se cascas vazias no longo prazo. A União africana consegue assegurar algumas missões de preservação da paz, com o apoio da ONU, mas a sua dimensão torna improvável qualquer desenvolvimento político em direção do federalismo. Em relação aos conjuntos econômicos sub-regionais como a CEDEAO na África de Loeste, a a CEMAC na África central ou a SADC na África austral, embora eles são mais consistentes, exprimem mais a implementação de uma visão capitalista e livre-cambista – no modelo da construção europeia – do que uma comunidade de destino construida a cerca de uma identidade partilhada.

Símbolo berbere, pintado na rua em Djerba (Tunísia).

O modelo político imposto após a descolonização constitui um espinho de longo prazo no pé dos novos Estados, pois apoia-se muitas vezes na concepção simplista do « Estado-nação »: um Estado, uma nação, uma etnia, uma cultura, uma língua, uma história, um destino. As fronteiras e a estrutura administrativa herdadas da colonização convidam a pensar o Estado-nação como o horizonte « moderno » da identidade política (pois impõe-se em todo lugar, e primeiramente nas antigas metrópoles). Embora uma tal concepção só pode basear-se na promoção de uma (e só uma) componente nacional, favorecendo as tensões e as rivalidades intercomunitárias. Este conceito de « Estado-nação » constitui uma ferramenta de dominação cultural: os Árabes no Magrebe e no Sudão, os Mouros na Mauritânia, os Wolofs no Senegal, os Tsongas em Moçambique, los Fangs na Guiné-Equatorial, etc. Ao contrário do objetivo oficial do princípio de intangibilidade das fronteiras (ou seja, evitar os conflitos interétnicos e as revindicações territoriais), o conceito de Estado-nação, alimentando a ilusão de uma nação etnicamente e culturalmente homogênea, revela-se fonte de conflito. Além disso, contrediz um outro princípio, o do direito à autodeterminação dos povos, pois num sistema político representativo (com um Parlamento nacional, um presidente, etc.), coloca potencialmente o poder entre as mãos de uma comunidade maioritária. Aliás, os conflitos separatistas, tendo as suas originas numa gestão desigual dos recursos e nos ressentimentos identitários, não faltaram nos sessenta últimos anos. Podemos mencionar a tentativa de separação do Estado do Katanga na República democrática do Congo entre 1960 e 1963; a guerra do Biafra entre 1967 e 1970 na Nigéria; a luta pela independência no enclave angolano de Cabinda desde 1975; ou ainda conflitos no Sudão entre 1955 e 1972 e entre 1983 e 2005 que conduzirem à independência do Sudão do Sul em 2011.

Sem esquecer que a intangibilidade das fronteiras não impediu os imperialismos regionais ou os conflitos entre Estados. Tal como, na Europa, projetos de « Grande Sérvia », « Grande Rússia », ou ainda « Grande Bulgária », que têm as suas raizes numa visão fantasiada do passado e do Estado-nação, a África conheceu projetos políticos com objetivo alimentar o sentimento patriótico. Podemos mencionar pelos menos dois: a guerra do Ogaden em 1977-1978, quando a Somália invadiu uma parte da Etiópia que ela revindicava sob o pretexto de reunir todos os povos somalis a volta de um projeto de « Grande Somália »; e a invasão do Sahara ocidental em 1976 pelo reino de Marrocos, que revindicava também a Mauritânia até 1969, conformo o projeto de « Grande Marrocos » indo até o rio Senegal e incluindo Tombuctu e uma parte do Sahara argelino – revindicações que até provocaram um breve conflito à fronteira com a Argélia em 1963. Podemos acrescentar ainda o conflito que opôs, entre 1978 e 1987, a Líbia e o Chade, no qual o Guia Supremo Muammar Kadhafi revindicava territórios fronteiriços ricos em hidrocarbonetos.

Contudo, quer se trata dos impérios, dos reinos ou dos proto-Estados que antecederem a colonização, é necessário constatar que em todo lugar ou quase, a configuração identitária simplista que caraterizou o Estado-nação moderno é algo bastante novo na maioria dos países africanos. Quer se trata dos impérios do Mali, do Gana, dos Songhaï ou do Futa-Toro na África de Leste; dos reinos Zulu, do Monomotapa ou de Gaza na África austral; ou ainda do Império maravi na região dos Grandes Lagos; todos implementaram-se em territórios pluri-étnicos, comporem com a diversidade linguística e cultural que acharam lá, ou até mesmo às vezes foram dirigidos alternativamente por dinastias de soberanos de etnias diferentes. As elites, longe de chamar a uma homogeneização cultural, souberam muitas vezes adaptar-se e gerenciar a diversidade. Um exemplo emblemático é o do Império do Mali (também chamado Império mandinga), o qual desenvolveu, pelo menos a partir do reinado de Sundiata Keïta no século XIII, uma tradição oral conhecida sob o nome de « parentesco à gracejo », o princípio sendo de associar famílias ou etnias para lhes permitir ridiculizar-se ou insultar-se umas às outras – uma prática que foi interpretada como um meio de desativar as tensões entre componentes étnicas ou de clã.

Até a concepção comunamente aceitada de « fronteira » deve ser analisada à luz das realidades diversas que caraterizaram a mairia dos territórios do continente: os limites das entidades políticas eram movediços e só constituiam raramente freios ou obtáculos à mobilidade. É portanto a própria percepção dos territórios que foi perturbada com a chegada dos Europeus. E imagina-se facilmente que o choque e as diferenças sobre os conceitos como o Estado, a fronteira ou a propriedade privada, foi ainda maior com pequenas comunidades de caçadores-colhedores, por exemplo as aldeias bantu ou pigmeus da floresta equatorial de África central, no vale do Congo, ou as comunidades dos San na África austral.

No mercado central de Abidjan, Costa de Marfim.

… e sistemas econômicos

A colonização teve obviamente um impacto humano e financeiro direto e imediato, pois a construção de infra-estruturas (de transporte, de edifícios, etc.) pelos colonos foi implementada em grande parte graças a recursos locais. No caso da França, uma lei do 13 de Abril de 1900 dando a autonomia financeira às colónias, previa o seu auto-financiamento. Para isso, o modelo colonial baseava-se em imposições obrigatórias em género e em numerário, retiradas às populações indígenas.

Podemos acrescentar a introdução do direito colonial, que conduzirá a muitas mudanças profundas, primeiro pela introdução de uma concepção propramente ocidental e capitalista da propriedade privada, sobre a qual observamos até hoje consequências desastrosas, particularmente em relação à propriedade da terra. Numa região como o Sahel por exemplo, marcada pelo nomadismo e a transumância, e onde as mudanças climáticas criam tensões a cerca dos recursos (a terra e a água), o direito francês sobre a terra e a instauração de fronteiras arbitrárias só contribuirem a criar confusão e alimentar as tensões. Terras dedicadas à agricultura de subsistância ou à criação de gado revelam-se o objeto de políticas de açambarcamento pelos Estados, sob o pretexto da ausência de títulos de propriedade das terras, e depois revendidas à oferta mais alta para praticar lá monocultura intensiva de exportação.

De forma geral, as infra-estruturas construidas ao longo da colonização tiveram como efeito destruturar e modificar radicalmente as economias locais, a diferentes escalas. As economias coloniais sendo viradas na metrópole, assistimos naturalmente ao desenvolvimento dos setores primários – as indústrias de transformação sendo reservadas à metropóle. Não só essas economias de plantação e de extração fragilizaram as economias locais, mas também contribuirem a empobrecer os solos e continuem, até hoje, a favorecer o desmatamento para aumentar as culturas. Os Estados africanos gerenciam ainda a herança desta economia nociva para a natureza, que os acordos comerciais com a União europeia alimentam… num espírito de parceria, presumimos.

Camelos no deserto de Adrar, na Mauritânia.

O caso do sistema econômico transaariano é suficientemente emblemático dessas transformações radicais. O deserto do Sahara, na História, foi há muito tempo percorrido por rotas comerciais. Os três grandes itinerários transaarianos sendo o entre Audaghost e Fès, a oeste; o entre Gao, Toumbuctu e o Mzab, nos confins do Mali e da Argélia atuais; e o entre Bilma no Níger e Tripoli na Líbia. Aquelas rotas baseam-se em oásis-relé, como Rissani para o primeiro ou Ghadamès para o terceiro. Esses cruzamentos permitiam o comércio e as trocas – trocas dos produtos vindos do norte como a lã de Egipto, os tecidos, os cavalos, as armas, as tâmaras, as pérolas, o vidro de Veneza, mas também os livros, e em particular o Corão, o que favoreceu a expansão do islão na África subsaariana. Trocas contra produtos vindos do sul, como o sal extrato das minas do norte do Mali, e do Níger, os escravos, o marfim, e o ouro do Império do Gana. A penetração dos Europeus no século XVIII, e depois a colonização do continente africano no século XIX, vão introduzir várias rupturas importantes: o comércio transaariano norte-sul é desviado ao benefício das feitorias e dos portos construidos pelos Europeus, na costa e depois ao longo dos rios (Senegal, Níger). No século XIX, as cidades do Sahara empobrecem-se, e no meio do século XX, o fim da colonização provoca a formação de Estados independentes. O Sahara encontra-se partilhado em uns dez Estados: o Egipto, o Sudão, o Chade, a Líbia, o Níger, a Tunísia, a Argélia, o Mali, a Mauritânia e Marrocos (ao qual podemos acrescentar o Sahara ocidental, anexado em 1976). As suas fronteiras, arbitrárias, limitam o nomadismo e provocam conflitos territoriais. O primeiro tem a ver com o Sahara espanhol, que torna-se em 1975 o objeto das rivalidades entre Marroquinos, Mauritanos e Argelinos. O segundo teve lugar entre 1978 e 1987 entre Líbios e Chadianos a cerca da faixa de Aozu revindicada por Tripoli. E um terceiro conflito encena os Tuaregues no Mali e no Níger, que contestam os traçados de fronteiros que impedem a organização da criação e da transumância. Acrescentam-se outros conflitos para o controlo dos recursos locais, como no Darfur desde 2003, ou ainda entre Tubus e Tuaregues, no sul da Líbia, desde 2014.

Agricultores na periferia de Maputo, Moçambique.

Este mecanismo de transformação forçado que aplicou-se no Sahara para implementar economias extrativas e de plantação, e fronteiras, pode ser observado no caso das economias da maioria dos outros países do continente: assim na Costa de Marfim ou no Gana, a promoção de monoculturas de exportação, centradas na produção de café, de cacau, de óleo de palma, de algodão, da banana ou ainda do açúcar de cana, dominou qualquer orientação política que não ambiciona fornecer os mercados ocidentais ou asiáticos em matérias primas ou en frutos exóticos. Embora as culturas de subsistência permanecem importantes, elas bastam raramente a assegurar a autosuficiência alimentar e não dispoem de apoio necessário – em particular a agricultura de subsistência que é excluida do mercado e portanto não interesse os investidores. Sobretudo, as atividades econômicas que as competem ameaçam a soberania dos Estados, as tornando dependentes da fluctuação dos preços dos géneros alimentícios nos quais não têm controlo, degradando em paralele o ambiente no longo prazo – lembramos assim que na Costa de Marfim, o primeiro produto de exportação permanece a madeira, que o país exporta mais do que o Brasil inteiro, mas a um preço ecológico elevado pois o ritmo do desmatamento é um dos mais importantes do mundo.

Um outro exemplo que pode parecer mais trivial: o dos tecidos wax que invadirem o mercado africano a partir do final do século XIX. Inspirado do batik javanês, uma técnica de impressão (com cera) dos tecidos praticada na Indonésia, o wax é notavelmente introduzido e industrializado pelos Holandeses, imitados pelos Britânicos, primeiro na comunidade ashanti no Gana, e depois em toda a África de Loeste. Acha-se hoje em dia em todo o continente. Desde a década de 1960, o Gana foi bem inspirado de criar as suas próprias fábricas e de impor alfândegas nas importações de têxtil, lhe permitindo entrar no mercado internacional, mas é uma excepção. Existem hoje em dia quatro tipos de wax: o holandês, o inglês, o africano e o chinês – o wax holandês fabricado pela empresa Vlisco sendo o mais prestigioso, com mais de 300 000 padrãos ilustrados. Mas se ele se tornou em um século o símbolo da moda africana, convem lembrar que esta performância fez-se ao custo de outros tecidos, artesanatos e maioritariamente produzidos no continente: o kent da etnia akan, que acha-se no Gana e na Costa de Marfim; o obom, tecido com base casca de árvore; o bogolan usado em vários países de África de Loeste; o Faso dan fani ; etc. A ideia, claro, não é aqui de dizer que deve-se voltar obrigatoriamente aos antigos tecidos ou alimentar uma nostalgia ingénua de tudo o que caracterizava a era precolonial, mas simplesmente de trazer um exemplo entre outros de mudança econômica profunda favorecida pela empresa colonial. Tipicamente, a relocalização das indústrias têxtis africanas constitui um desafio estratégico para as sociedades africanas. O golpe de Estado de 1987 contra o presidente do Burkina Faso Thomas Sankara, o qual elogiava a produção e o consumo local, basta a ilustrar as questões políticas e econômicas que que se perfilam por trás, e que não têm nada de anecdótico.

Porto de Bissau, na Guiné-Bissau.

Porto de Bissau, na Guiné-Bissau.

Colocar os « aspectos positivos da colonização » no seu lugar e desconstruir o mito da « convergência »

O balanço escrito aqui acima, sem ser exaustivo, pode deixar perplexo em relação ao discurso frequente na Europa sobre « aspetos positivos da colonização ». A França, para só mencionar um exemplo, construiu muitas e muitas infra-estruturas nas suas colónias: mais de 50 000 km de estradas de alcatrão, 215 000 km de pistas qualquer temporada, 18 000 km de caminho de ferro, 63 portos equipados, 196 aeródromos, 2 000 postos de saúde equipados, 600 maternitades, 220 hospitais, 16 000 escolas primárias e 350 escolas segundárias. Um balanço bonito em teoria (embora é um pouco magro na realidade para um conjunto de 10 milhões de km²), mas que não significa nada se não é explicado pela sua primeira função: a exploração dos recursos naturais e dos seres humanos, ao serviço da metrópole.

Certamente, a França construi estradas e caminhos de ferro, mas ao serviço de economias extrativas viradas nos portos, para exportar matérias primas em direção da metrópole. Exemplo emblemático, a exploração das minas de ferro na Mauritânia, e o seu transporte por comboio de mercadoria indo da cidade operária de Zouerate até o porto de Nouadhibou, constituem todo um circuito made in France que continua ainda hoje de alimentar uma economia de rentista, pouco criador de empregos e nas mãos de uma classe política mauritana corrupta, formada à escola francesa, que interiorizou o desprezo do seu próprio país de tal forma que a exploração das suas riquezas ao serviço de interesses estrangeiros nem a choque em nada.

E certamente, a França construiu escolas, mas para transmitir conhecimentos franceses, para ensinar a língua colonial e para formar agentes coloniais capazes de trabalhar na administração. Este trabalho fez-se com base uma desvalorização cultural profunda das identidades e dos saberes indígenas, e de uma concepção puramente francesa da instrução, considerando que os indígenas não tinham saber digno de ser ensinado, e deixando de lado qualquer outro modo de transmissão do conhecimento do que a escola. Nesta lógica, considera-se que os indígenas foram sortudos por terem descoberto Montaigne, Victor Hugo e Molière. Mas quem pode imaginar que a colonização consistiu em oferecer romances e livros de poesia aos Africanos? O ensino revelou-se uma ferramento de submissão inteletual, oferecendo uma interpretação europeia da cultura, da História, das ciências, da geografia, etc. As línguas coloniais tornavam-se as línguas do conhecimento. Em paralele, as culturas africanas foram desvalorizadas, e as crenças e religiões locais foram as vítimas da ação combinada da escola colonial e das missões cristãs. A construção de hospitais pela França deve também ser conectada à sua função primeira: curar contra doenças tropicais cidadãos e sujeitos franceses, os quais imaginamos bem que a metrópole os preferem de boa saúde, e não mortos por paludismo – não só para justificar a sua presença, mas também para fazer viver a colónia.

Extrato da banda desenhada « Tintim no Congo » (1931), do desenhador belga Hergé.

Extrato da banda desenhada « Tintim no Congo » (1931), do desenhador belga Hergé.

Barragem de Cahora Bassa, Moçambique.

A banda desenhada Tintim no Congo (1931), do desenhador belga Hergé, que simboliza a visão de uma África burra e primitiva onde até o cão Milu exprimiria-se melhor do que os Negros, traduz a visão de uma época. Aimé Césaire, no seu Discurso sobre o colonialismo (1955), dizia: « Recebo na cara factos, estatísticas, kilometrágens de estradas, de canais, de caminho de ferro. Eu, falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano. Eu falo dos que, na hora na qual eu escrevo, estão cavando à mão o porto de Abidjan. Eu falo de milhões de homens arrancados aos seus deuses, à sua terra, aos seus hábitos, à sua vida, à dança, à sabedoria. Eu falo de milhões de homens a quem foi inculcado sabiamente o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, o ajoelhamento, a desesperança, o empregadismo. » A colonização, como o sublinhava ainda Aimé Césaire, é uma « negação da civilização ». Por isso, é um crime desumanizante, uma barbaridade injustificável.

O postulado de uma missão civilizadora como aquela que era proposta no século XIX para justificar a conquista da África, é o de uma concepção racista do mundo, e particularmente em relação aos Negros. É também o de uma visão linear da História. A mesma que exprime-se no nome de um museu ou de coleções dedicados aos « artes primeiros » (é o caso do Museu do Cais Branly-Jacques Chirac, em Paris), como se eles precediam necessariamente um « segundo » arte, ou ainda um « terceiro », numa escala hierárquica da evolução humana. Esta representação alimenta a ideia de uma recuperação, de uma convergência da África em relação ao Ocidento, na qual basem-se ainda as políticas de ajuda pública ao desenvolvimento. Desconstruir este mito é necessário. É na África, mas é também na Europa, onde a Revolução industrial e os progressos da ciência desde o século XVIII construirem-se com base uma concepção distinta do humano e da natureza, ao custo dos ecossistemas, do clima e da saúde dos seres humanos – concepção em relação a qual constata-se uma conscientização desde a década de 1980, através do pensamento ecofeminista que descreve três colonização: a d meio ambiente, a do corpo das mulheres e a das sociedades não-ocidentais. Em relação às duas últimas, aliás, haveria muito para dizer sobre o controlo colonial nas mulheres indígenas.

A exploração concomitante dos países do Sul e da natureza acha a sua consagração nas estratégias de desenvolvimento como a suposta « Revolução verde » promovida na década de 2000 na África, ao preço de uma degradação sustentável dos ecossistemas – como por exemplo programas como a AGRA (Aliança para uma revolução verda na África), financiada tanto pela Fundação Rockefeller como pela Fundação Bill & Melinda Gates, com a benção do grupo Monsanto que aproveitou para vender as suas sementes patenteadas. Tipicamente, a luta contra a privatização e do patenteamento das sementes agrícolas poderua constituir uma luta comúm entre camponeses do Norte e do Sul, abrindo o caminho para uma concepção nova da vida, do progresso e do « modelo à seguir ». Em resumo, uma deconstrução da noção de « recuperação », de « convergência », da nossa relação aos recursos, e da leitura linear e capitalista do progresso que nos é vendida (da qual o progresso técnico constituiria o motor).

Estação de comboio em Walisbay, Namíbia.

Estação de comboio em Walisbay, Namíbia.

Em 1993, em Ecofeminismo, a ensaista alemã Maria Maes descreveu muito bem o mito da convergência pelo desenvolvimento, que ela critivaca por princípio: « Virtualmente todas as estratégias de desenvolvimento são baseadas numa hipótese explicita ou implicita que o modelo do "bem viver" é aquele que encontramos nas sociedades de abundância do Norte: os Estados-Unidos, a Europa e o Japão. Respondemos, em geral, à questão de saber como os pobres do Norte, os dos países do Sul, e os camponeses e as mulheres do mundo inteiro podem atingir este "bem viver" por o que chamamos, desde Rostov, a via do "desenvolvimento por recuperação". Dito de uma outra forma, podemos atingier este objetivo perseguindo a mesma via de industrialização, de progresso tecnológica e de acumulação de capital adoptada pela Europa, os Estados-Unidos e o Japão. Estes países e estas classes ricas, o sexo dominante – os homens – o centros urbanos e os estílos de vida dominantes são assim percebidos como a utopia realizada do liberalismo, uma utopia que deve ainda ser atingida por os que, aparentement, ainda estão para trás. Sem dúvida, a riqueza dos países industrializados é a fonte de um grande fascínio para aqueles que não têm a possibilidade de a partilhar. […] Este mito é baseado numa compreensão evolucionista e linear da história. Nesta concepção da história, alguns já atingirem o cume da evolução, os homens em geral e em particular os homens brancos, os países industrializados, os citadinos. Os "outros" – as mulheres, as pessoas de cor, os países "sub-dedensolvidos", os camponeses – atingirão também o cume com um pouco mais esforços, educação, "desenvolvimento". Consideramos o progresso tecnológico como a força motriz deste processo evolutivo. »

Esta convergência é um mito, pois considera o modelo econômico ocidental como o que qualquer nação esteria (ou teria direito) a atingir. Mas o Ocidento consume mais do que o razoável ou as necessidades pedem, e só pode o fazer ao preço da exploração das sociedades não-ocidentais, das mulheres, dos trabalhadores migrantes e da natureza. Alimentar este mito da « recuperação » pelo desenvolvimento, é fazer abstração dessa realidade. Portanto, não há convergência possível, e o acesso de tal ou tal população, na Ásia, na América latina ou na África, a padrões de vida consumeristas, só pode fazer-se ao preço de uma exploração abusiva de outras sociedades (colonização de povos estrangeiros), ou de margens da sociedade (colonização interna), por exemplo os habitantes das favelas ou do campo por os dos centros urbanos, ou dos Negros pelos brancos. Além disso, as economias ocidentais baseam-se numa procura do crescimento e numa omnipotência do setor financeiro, incompatíveis com um planeta com recursos limitados. Por isso, elas não podêm constituir razoavelmente um modelo para seguir.

Desconstruir o pensamento colonial para sair de uma desvalorização fortamente interiorizada (pelos Brancos como pelos Negros) das culturas e das identidades africanas não é um negócio fácil para resolver. No continente europeu, a tarefa parece particularmente difícil, porque supõe uma humilidade que nos falta profundamente, quando se trata de comparar-se aos outros povos e aos outros continentes. Sobretudo, o mito da convergência nos dá a ilusão de estar liderando o « pelotão » (em 2012, o ministro do Interior francês Claude Guéant declarou claramente que « todas as civilizações não se valam ») e justifica alguns dos crimes europeus na História. O surgimento de uma conscientização ecologista e feminista, porque ela permite promover sinceramente um modelo e um conjunto de valores compatíveis com o respeto do vivente, revela-se interessante em relação a isto, pois permite, juntando-se ao paradigmo antiracista, uma crítica do pensamento colonial (que desprezava as culturas não ocidentais justamente porque as julgava próximas demais da natureza).

No continente africano, o trabalho de deconstrução do mito da convergência inscreve-se claramente no de uma descolonização do pensamento, e supõe provavelmente uma introspecção identitária (quando os povos o julgam necessário), uma leitura reinventada do passado e do presente, para resituar o continente africano no mundo, à luz de uma memória que não se resume a episódios dolorosos como a escravatura e à colonização. E à luz de um destino que não se resume à exploração perpétua dos seus recursos por interesses estrangeiros ou a crises recorrentes. Este trabalho de introspecção, já é parcialmente dirigido por inteletuais e artistas brilhantes, como o economista senegalês Felwine Sarr, o historiador cameronês Achille Mbembe, a autora cameronesa Leonora Miano ou o estilista cameronês Imane Ayissi (o qual concebe as suas coleções com base tecidos tradicionais africanos). A obra do historiador e antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop abriu o caminho teórico a esta reconciliação identitária. Quando tudo se desmorona, tudo fica para reinventar, mas nenhuma sociedade começa numa página branca.

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No seguinte extrato, o escritor (e antigo diplomata) francês Jean-Christophe Rufin introduz o capítulo 6 (« A salvação do hamster ») do seu ensaio O Império e os Novos Bárbaros, publicado em 1990 (e reeditado em 2001). Ele descevre ai a ilusão do critério do PIB para comparar os níveis de desenvolvimento dos diferentes países pelo globo, o mito da visão linear levado pela crença na da convergência pelo desenvolvimento, mas também a base paradigmática comum (por trás da « necessidade do envoltório económico ») das ideologias liberais e marxistas da Guerra fria.

Quando escreve-se: Estados Unidos, PIB por habitante: 18.300 US$, Malawi, PIB por habitante: 160 US$, quer dizer [que] são diferentes [mas também] que são similares, pois podemos os comparar. A economia exprime as diferenças sob a forma de diferenças quantitativas mas ela confirma implicitamente [a semelhança]. Envolvidos assim, Malawi e Estados Unidos são dois objetos de dimensão desigual, mas de mesmo género. Diremos que um é mais avançado do que o outro, supondo que são situados numa mesma linha contínua, ou seja, com o tempo, um pode [...] recuperar o seu atraso. [Dai] resuma-se a relação relativa dos dois países dizendo que um é desenvolvido, e o outro sub-desenvolvido. [...] Fala-se então de país em via de desenvolvimento, ou melhor ainda, de país em desenvolvimento.

O autor continua assim: « Desde a Segunda Guerra mundial, provavelmente não conhecemos outro ídolo universal: a visão quantitativa da economia é o supremo envoltório das realidades mundiais. A Organização das Nações Unidas é inteiramente dedicada ao seu culto. Na imensa literatura poliglota, a ONU e as suas instituições especializadas produzem incessantes avaliações dos desempenhos relativos dos diferentes Estados no plano económico. em qualquer momento permitido conhecer a posição relativa das Maldivas e da Inglaterra, do Iêmen e dos Países Baixos nesta corrida plantária ao desenvolvimento. » Antes de perseguir como segue.

Este envoltório não tem como única virtude reunir países diferentes: é também o único ponto de encontro das ideologias opostas. Entre liberais e marxistas, desenvolvimentalistas e dependentistas, [...], o desacordo sobre os meios e as estratégias pode ser total. Pelo menos, permanece admitida por todos a necessidade do envoltório económico, para dar-se conta dos resultados, ou seja, do avanço ou do atraso de cada um. Sob este registro, Marx é o concorrente de Adam Smith, e não a sua negação: ele quer fazer « de outra maneira », na única esperança de fazer melhor, ou seja, mais. [...] [Entre] os grandes agregados [que] permitem a comparação internacional [...], o mais apreciado, o mais positivo, não deixe de ser o indício da produção, ou seja, da « criação de riqueza ».

Jean-Christophe Rufin, O Império e os Novos Bárbaros (1991, reeditado em 2001).

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