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O acendedor de lampiões

Estamos em democracia? (2/3) A feira dos corpos intermediários

2 Septembre 2023 , Rédigé par Jorge Brites Publié dans #Democracia

Em 2 de Outubro de 2016, organizou-se na Colômbia um referendo sobre o acordo de paz e as Forças Armadas Revolucionárias de Colômbia (FARC). Aprovamos ou não o tal acordo, a consultação do povo é incontestavelmente um exercício de democracia. O povo colombiano prononciou-se num acordo de paz estruturante para a nação. No entanto, a opção do referendo foi criticada em si, depois do resultado ser anunciado. A final, com 37,44% de participação, 50,21% dos votantes recusaram o acordo, o que não impediu o governo de o implementar, com umas mudanças marginais. Tal como na Europa, a França em 2005 e a Grécia em 2015, os Colombianos tinham « mal votado », e foi então necessário « corrigir » o voto popular.

Ao mesmo tempo, aqueles que esperam dos sistemas políticos atuais uma verdadeira tomada em conta das necessidades dos habitantes só podem ser decepcionados, pois sistema representativo não significa sistema democrático. A confusão das noções, desde a Revolução francesa, alimenta a ilusão que estamos em democracia, mas a atualidade política e social lembra-nos regularmente as contradições entre as decisões tomadas pelo poder e as esperanças e necessidades reais das pessoas. A análisa do nosso modelo político e social permite todavia, com certos elementos de história em mão, identificar os canais de pressão e de expressão à disposição do povo que permitem reequilibrar as relações de poder (inclusivo aquelas entre a representação e o povo) e integrar, pelo menos em teoria, um pouco de democracia.

Para ir mais longe sobre a opposição histórica entre democracia e sistema representativo: Estamos em democracia? (1/3) A mascarada do sistema representativo

O estudo da democracia nos países da Europa continental, a França em primeiro lugar, é muito caracterizado pela recusa em ver o povo de uma outra maneira do que « um e indivisível ». Essa leitura facilitava a construção de uma nação homogênea em um contexto de construção do Estado-nação e de subida dos nacionalismos centralizadores e guerreiros. A aparição do sistema partidário logo no final do século XIX certamente ajudou a mudar essa visão simplista, pois os partidos permitem a estabelecimento de um sistema estável de expressão das preferências políticas, revelando muitas vezes a diversidade social. No entanto, a tradição jacobina não deixou de estar bem implementada em França e nos países que seguiram esse modelo centralizado (a Turquia por exemplo), estabelecendo um vínculo particularmente forte entre o poder (muitas vezes personalizado, fiel à tradição bonaparto-gaulista) e o « povo ». Daí, ela desconfia nos corpos intermediários entre o Estado e o cidadão.

Apesar de tudo, é preciso constatar que o continento europeu reconheceu há certo tempo que a função democrática não depende somente da esfera política, mas também de outros atores que intervem para exprimir a voz do povo. Ou melhor, as vozes do povo. É notável no que liga aos sindicatos que foram capazes de constituir-se como atores autónomos gerando conflitos sociais e processos de consulta na administrações. Modos originais e inovadores de expressão cidadã e social ultrapassaram a representação, superando as suas deficiências, e permitirem à sociedade de existir e de exprimir-se na sua totalidade. É o que Pierre Rosanvallon, historiador e sociólogo francês contemporâneo, chama a democracia de equilíbrio. Entre outros corpos intermediários, os partidos políticos parecem os mais importantes, pois, por essência, eles desempenham um papel de representação.

Os partidos políticos: expressão de ideias ou expressão de classe?

Os partidos participaram a reduzir o defícito inicial de figuração dos sistemas representativos modernos, e assim a construir a democracia de equilíbrio. Até meados do século XIX, a palavra « partido » evocava a opinião e não fazia pensar, ainda, numa noção de organização que surgiu com o que foi chamado, a partir dos anos 1920, o sistema dos partidos. O partido da ordem, o partido do progresso, etc., evocavam a noção do clã, do grupo de pressão ou do movimento de opinião, mas ainda não havia estruturas regulares, pois o tamanho ainda limitado do corpo eleitoral não necessitava enquadramento. Como passamos dessa abordagem para estruturas organizadas, com órgãos de direção, formas de recrutamento e de adesão, e programas específicos?

Os debates sobre a representaçéao reconhecerem progressivamente as organizações partidárias como um modo relevante de expressão de todas as orientações políticas. Para isso, foi necessário aceitar os limites do universalismo abstrato, e uma nova abordagem do pluralismo. O separatismo operário tinha certamente, o primeiro, pedido uma forma de expressão separada, o que no entanto era diferente: a figuração do partido baseia-se, não sobre a dimensão social dos indivíduos, mas sobre as suas opiniões. No entanto, a noção de minoria apresentada nos debates sobre o modo de voto à proporcional (com listas, como em Portugal, Espanha, Grécia, Israël, etc. e ao contrário notável da França e do Reino-Unido), legitimou mais claramente a instauração de um sistema plural de representação, o objetivo sendo de torná-lo o regime do povo (na sua totalidade), e não o da maioria.

A partir dos anos 1890, o regime estabilizou-se em França, e o voto republicano tornou-se comum; daí, as clivagens mudaram, e foram então mais aceitas. Em um famoso discurso pronunciado em 1889, Jules Ferry reconhecia a diversidade francesa, reunida na unidade republicana. Igualmente, nos seus escritos, Waldeck-Rousseau, homem político da IIIeira República, aceitou que a República oscila entre vários polos, com novas eleições de partidos, por oposição com antigas eleições de circonscripção. O caso Dreyfus, no início do século, vai favorecer o reconhecimento de uma forte e legítima clivagem esquerda-direita.

O desenvolvimento da forma partidária tornou-se depois inseparável do devate sobre a representação proporcional. Numa sociedade mais individualista onde as orientações políticas não dependem mais da participação a um grupo, os partidos levam em consideração as mudanças de princípio dos sujeitos políticos. O partido moderno é, nesse aspecto, um órgão intermediário único, pois possui em si uma força de encarnação. Refere-se tanto à dimensão individualista da sociedade quanto ao universo da comunidade: uma vez que encontram nele a produção de uma identidade coletiva e a expressão de escolhas pessoais. Nesta perspectiva, o estudo do partido é inseparável da análise mais ampla do sistema dos partidos. A « democracia dos partidos » só pode, de fato, surgir quando são vários e se eles permitem organizar politicamente a diversidade. Assim, entre a rigidez dos antigos ordens e a dispersão das preferências individuais, o sistema dos partidos permitiu uma verdadeira racionalização do pluralismo. Além disso, os partidos até criam uma identidade, e não apenas estendem identidades sociais pré-existentes.

Anteriormente, o surgimento do partido de classe, e em particular do partido obreiro (ou mais especificamente, do partido operário), tinha desempenhado um papel especial ao ter, além do papel de mediação entre o Estado e a sociedade civil, uma função de encarnação social, respondando assim mais diretamente à demanda de representação separada exprimida pelo mundo operário, ou até pelo mundo obreiro. As evoluções são no entanto diferentes segundo os países: em França, nos anos 1860 e 1870, o movimento devia antes de tudo representar a expressão de uma identidade professional, e a variável sociológica era então primeira. Nos anos 1880, passamos a um socialismo político, onde a referência operária permanece central, mas onde a representação pode ser sociologicamente diferente. Isso contribui a dar um papel de encarnação aos sindicatos que eles não tiveram tanto em outros lugares: ne Alemanha e na Ingleterra, 80% dos partidos social-democrates e trabalhistas são compostos de operários, as adesões coletivas pelo intermediário dos sindicatos constituindo a regra. Em França, enquanto o partido socialista define-se como um partido de classe, na realidade, ai é que observa-se uma diferença: ele santifica a classe trabalhadora, mas não a encarne sociologicamente; é um « proletariado de ideia » que impõe-se, uma abstração do « povo obreiro » (ou povo operário, peuple ouvrier em francês) como conceito motor da história. De fato, por operários (ouvriers), os socialistas franceses daquela altura consideram mais amplamente quase todos aqueles que trabalham – o que parece ser uma consagração de 1789. Enquanto os social-democrates alemãos aceitam a divisão da sociedade e procuram formas de equilíbrio e de equidade, os socialistas franceses querem ultrapassar as oposições pelo um novo universalismo. O problema de « um proletariado de ideia » sendo que uma elite monoritária, não representativa do mundo operário (ou mas amplamente do mundo obreiro), pode falar em seu nome logo que ela pretende agir com objetivo seus interesses e que ela convence o proletariado que ele precisa ser acompanhado por inteletuais que, melhor do que os próprios operários, exprimeriam as suas necessidades. Estamos assim perto de uma infantilização do proletariado, extremamente prejudicial para a defesa dos seus interesses – especialemente quando, um século depois, as políticas implementadas diferem tanto dos discursos iniciais.

Basta um olhar sobre a paísagem política ocidental para ilustrá-lo: sejam eles chamados socialistas, social-democratas ou trabalhistas, os partidos obreiros de governo não propõem uma oferta política suficientemente distante da dos partidos conservadores ou liberais para convencer indefinitivamente da sinceridade dos seus líderes, que constituiram com o tempo uma verdadeira classe social em si (o PS francês é exemplar disso, muitas vezes qualificado de « partido de notáveis ») e que implementaram políticas contraditórias com os discursos de campanha. Qual foi o dirigente socialista ou trabalhista que realmente questionou o poder do grande capitalismo globalizado, do mundo financeiro, o sistema atual de repartição das riquezas? Um sistema política no qual nenhum partido no poder discute a possibilidade de enriquecer impunemente na base da miséria dos outros, não pode ser qualificado de democrático. A democracia dos partidos, porque só os partidos de ideias, e não os partidos sociologicamente representativos, chegam ao poder, só é a ilusão de diversidade das representações (mesmo que limitar-se a partidos de classe também apresenta riscos, primeiramente aquele de instaurar a lei da classe majoritária em detrimento das outras). Levados pelas mídias, os partidos de governo fazem campanha sobre uma promessa de mudança que não corresponde a nenhuma realidade séria. Um partido verdadeiramente alternativo, como poderia ter sido o Syriza na Grécia a partir de 2015, encontra inevitavelmente a oposição estruturada e radical do poder real e do sistema.

Militantes políticas durante a campanha eleitoral das autárquicas, em Porto Alegre (Brasil) em Setembro de 2008.

Militantes políticas durante a campanha eleitoral das autárquicas, em Porto Alegre (Brasil) em Setembro de 2008.

Sindicatos representados numa manifestação em São Paulo (Brasil) em Março de 2019.

Sindicatos representados numa manifestação em São Paulo (Brasil) em Março de 2019.

Os sindicatos: abordagem representativa versus abordagem revolucionário

Outro elemento constitutivo da « democracia de equilíbrio », o sindicalismo, aparecido no final do século XIX e no início do século XX, foi original por levar um forte senso de classe e uma verdadeira aspiração a uma democracia substancialista, enquanto os socialistas aproximavam-se do ideal monista republicano que valoriza a representação parlamentar, única diante da qual o governo deveria ser responsável. Além de uma radicalização do separatismo operário dos anos 1860, o sindicalismo quiz oferecer aos decepcionados do sufrágio universal novas práticas políticas. De fato, em França, os decepcionados da IInda República e os limites de transformação sob a Terceira República constituiram um terreno fértil para o surgimento do sindicalismo. Na França, como dissemos, os partidos socialistas desenvolveram um « socialismo doutrinário » oposto ao socialismo sociológico. Isso criou a desconfiança dos sindicalistas; por exemplo, os pais fundadores da CGT suspeitavam que a democracia trouxesse uma nova classe dominante composta por professionais da política. De fato, é o próprio fundamento da instituição parlamentar que era então rejeitada, o sindicalismo desconfiando do princípio representativo baseado sobre uma apreensão do povo como sujeito político global e indiferenciado. Por isso, o sindicalismo procurou afirmar sua legitimidade, não sobre critérios quantitativos, mas sobre uma relação de identificação. Mais do que ser um representante, o sindicalismo quiz constituir o princípio vital dos grupos professionais. Com esta medida, podemos falar de uma concepção essencialista da representação. Essa « política do corpo » chegou ao ponto de conceder, no final do século XIX, uma voz a cada sindicato nos congressos da CGT, qualquer seja sua importância numérica. Esse sistema simbolizava de fato uma certa concepção de solidariedade operária (e obreira em geral), cada corporação valendo uma outra, uma vez que elas participavam todas da utilidade social geral das profissões. Este modo eleitoral só foi abandonado em 1923 com a ruptura da CGTU.

Na sua ideologia como no seu funcionamento, o sindicalismo desde a origem distinguiu eleição e representação, o que aliás preocupou muito tempo os meios socialistas e republicanos, os primeiros porque temíam a marginalização da classe operária pelo seu culto das minorias ativas, is segundos por causa do caráter incontrovável e imprevisível das paixões sociais. O objetivo do debate sobre o sindicalismo é então durante muito tempo de dar-lo uma capacidade representativa; Jaurès e a seguir Millerand sugeriram por exemplo sem sucesso, em 1900 e depois em 1906, um sistema de delegados operários eleitos por sufrágio universal, para dar aos sindicatos uma força legal e uma maior autoridade, mas também para regular melhor as greves (que multiplicavam-se desde 1898). A constante recusa do sindicalismo revolucionário para desenvolver a democracia internamente iniciou, a final, o seu declínio, as formas de democracia operária desenvolvendo-se em paralele. A determinação eleitoral da representatividade sindical só foi consagrada em 1936 com a eleição de delegados dos salariados, após negociações com a Frente popular.

Tensões e conflitos fazem parte da vida democrática. A maneira como eles são assumidos e resolvidos permite questionar o significado contemporâneo da política. As motivações e as modalidades de ação coletiva, como expressão de formas de envolvimento, levantam a questão do quadro legal democrático garantindo as liberdades públicas permitindo essas mobilizações coletivas, e a das lógicas que enquadram a reunião de cidadãos que partilham o objetivo da defesa de interesses comuns. O estudo do funcionamento, do papel, da representatividade, do « declínio » dos sindicatos permite apreendê-los como um componente histórico da participação política e da sua evolução. A singularidade do sindicalismo francês pode ser tratado a cerca dos paradoxos seguintes: fraqueza do número de aderentes, proliferação das organizações, forte capacidade de mobilização. A taxa de sindicalização foi dividida por mais de três em França desde 1945 e estabilizou-se a cerca de 8% de sindicados nos vinte últimos anos, longe atrás dos outros países da União europeia. A sindicalização é mais importante nas profissões de quadros (uns 15% mais ou menos) do que nos operários (a cerca de 6%) e empregados (entre 5 e 5,5%), e inferior a 3% nos precários (trabalhadores temporários, contratos com duração determinado); a evolução do trabalho salariado, as reestruturação industriais desde os anos 1970, a explosão do setor terciário, o desenvolvimento de outros atores de participação na ação coletiva (as « coordenações », por exemplo), a ascenção dos valores individualistas, explicam por parte essas estatísticas muito baixas. Mas essas dificuldades também podem estar relacionadas ao fato de o sindicalismo francês ser um sindicalismo representativo, no qual uma organização negocia para todos os salariados e não só para seus membros. Sobretudo, convem lembrar que esse movimento sindical não construiu-se, historicamente, como um sindicato de serviço (uma vez que a liberdade sindical levou mais tempo do que em outros lugares para implementar-se em França), e que sempre ele definiu-se como independente dos partidos políticos, enquanto exibia o duplo objetivo: a defensa de interesses imediatos, e o desejo de transformação social.

Hoje em dia, embora os sindicatos franceses sejam regularmente criticados por sua baixa representatividade, dado o fraco número de aderentes, convem provavelmente pensar de novo o seu papel e o seu funcionamento. Assim como na vida política, convem questionar a possibilidade de ver pessoas ter uma carreira de longo prazo no sindicalismo. A profissão dessas pessoas: sindicalista. Sem contestar a sinceridade de muitos deles, é preciso reconhecer que a presença contínua dos mesmos líderes sindicais durante décadas na liderança das organizações prejudica potencialmente a legitimidade das lutas que eles levam e contribui a enfraquecer a representatividade desses corpos intermediários. Corpos intermediários que devem também, tal como os partidos políticos, fazer autocrítica e aplicar o princípio de renovação nas suas lideranças. Também devem questionar-se sobre os meios que têm para garantir, mesmo sem serem representativos da massa dos trabalhadores em termos de adesões, que sua ação responde às expectativas e reivindicações reais do proletariado.

A sociedade civil: a expressão sob o pretexto da perícia

O que Maurice Hauriou chamava a administração consultativa, que é a associação direta dos atores da sociedade civil à definição e à implmentação das intervenções do Estado, também teve um papel importante no equilíbrio das formas democráticas. Logo nos anos 1880, os republicanos no poder entendem que as instituições estabelecidas nos anos 1870 não bastam para resolver a « questão social » e que o isolamento do mundo do trabalho alimenta ressentimento, muito bem ilustrado pelo livro Germinal, escrito por Émile Zola e publicado em 1885. A criação em 1891 do Conselho superior do Trabalho simbolisa essa ruptura, embora seja menos ambiciosa na representação sociológica do que o previsto pelo projeto inicial elaborado pelo radical Gustave Mesureur em 1890. Procura-se então novas formas de representações operárias, diferentes no entanto da ideia de representação separada do Parlamento.

Outros projetos inscrevem-se na mesma dinâmica de redefinição da relação entre o Estado e a sociedade civil, como o Conselho superior de Assistência pública em 1988, ou ainda o Conselho superior da Instrução pública no mesmo ano. Além de uma concepção renovada dos serviços públicos, procura-se um modelo alternativo ao sistema partidário e à representação das classes, escondido de fato atrás de uma retórica da expertisa. De fato, esses conselhors permitiram à sociedade civil tornar conhecidas as situações que o sistema política quase não levava em conta. Hoje em dia, é claro que o tecido associativo tem um papel importante na expresséao de muitas situações, individuais e coletivas, problematicas. Mas tal como para o sistema dos partidos ou a vida sindical, constata-se lá também fenômenos de carreiras professionais. Os riscos: personalizar lutas coletivas, ou ainda professionalizar o setor associativo (e dai excluir as associações menos « professionais » das relações de poder com as autoridades públicas).

Acima de tudo, os atores do que chamamos a sociedade civil devem estar consciente a sua função real, porquê eles existem. Muitas associações assumam um papel de serviço público e de assistência social, às vezes mesmo de assistência humanitária, onde esteriamos mais a espera dos poderes públicos. Alimentar pessoas, trabalhar para a reinserção socioprofissional de jovens desempregados sem graduação, assistir solicitantes do estatuto de refugiado nos processos administrativos, ou ainda dar aulas noturnas a adultos analfabetos, são ações louváveis, mas com as quais o Estado aproveita para não assumir a sua própria função social (se é que se considera que cabe ao Estado assumi-la). A vocação de uma sociedade civil desenvolvida e estruturada não é tanto substituir os poderes públicos quando eles falham, mas sim os interpelar para que assumissem suas responsabilidades e assumem seu papel. Ações locais de solidariedade podem existir, mas elas não devem inscriver-se no longo prazo; devem sobretudo servir para inspirar as autoridades.

Estamos em democracia? (2/3) A feira dos corpos intermediários

Os limites estruturais da democracia de equilíbrio

O que Rosanvallon chama a democracia de equilíbrio permanece precário e muito relativo, pois não anula as contradições resultantes do mecanismo representativo. Democracia de equilíbrio significa também democracia imperfeita porque não acabada. Pierre Rosanvallon lembra ainda nos seus escritos o risco de deriva para o corporativismo, ou o já tratado por Hannah Arendt e Claude Lefort de uma deriva totalitária desta democracia de equilíbrio – o totalitarismo sendo primeiramente uma exacerbação do princípio representativo unitário prolongando a utopia de criar um poder totalmente confundido com a sociedade.

A democracia de equilíbrio em França tomou uma forma ainda mais particular, porque as instituições seguintes: o sistema de partidos, a eleição proporcional e a representação dos interesses econômicos e sociais, foram ai menos estruturantes do que em outros países onde elas tiveram um papel fundamental. Constata-se logo no século XIX receios frente aos partidos, por grande parte por cause dos efeitos persistentes do monismo revolucionário. Até depois da Libertação em 1944, enquanto muitos países procuravam dar um quadro legal mais organizado aos partidos, os Franceses recusaram qualquer ideia desse tipo; o debate de Outubro de 1945 na Assembleia constituante era bem ilustrativo. E a impossível implementação de um sistema estável de eleiçéao com modo proporcional só fez crescer o receio em reconhecer o papel positivo de uma democracia dos partidos. A dimensão figurativa da representação só saiu dai mais complexa ainda.

Os anos 1980 marcaram uma mudança nos sintomas de colapso da democracia de equilíbrio, a instabilidade crescente dos comportamentos eleitorais e o declínio dos mecanismos de identificação político. Observa-se de fato uma « des-sociologização » da política entre as décadas de 1970 e 1980; por exemplo, os operários representavam 43% dos membros da SFIO (o ancestral do Partido socialista) em 1951 enquanto eles só constituem uns 12% dos membros do PS em 1990. Essas mudanças explicam-se pela identificação crescente do Partido comunista francês ao totalitarismo soviético, como também com a desaparição das referências tradicionais (declínio da prática religiosa, desintegração das culturas populares), o declínio do sindicalismo, mas também pela vitória da esquerda em 1981 que acompanhou-se de um realismo gestionário (que conduziu a implementar políticas liberais) e de um recurso crescente a referências republicanas e a um certo universalismo, acentuado ainda mais a crise de identificação.

Logo nos séculos XVIII e XIX, a abordagem sociológica foi rejeitada pelos teóricos da democracia, ao benefício de uma definição política considerando o povo como « a expressão sossegada e tranquila da vontade geral ». E é essa clivagem semântica que dominou, aliás, todos os debates sobre o sufrágio universal ao longo dos séculos XIX e XX. É a própria natureza do povo que está questionada, e essa problemática prolongou-se amplamente até hoje. O papel progressivamente reconhecido dos partidos políticos, a definição de novas técnicas eleitorais, e o lugar dado aos corpos intermediários responderam por parte a esse debate. A « crise da representação » deve ser entendida como resultante, desde os anos 1980, da erosão desse democracia de equilíbrio. As transformações da sociedade forçam o sistema representativo a reconsiderar as contradições originais que nunca foram resolvidas, e que apenas tinha conseguido compensar.

Em 1996 foi publicado o Manifesto dos dez para a paridade, que poderiamos ser tentado de comparar com o Manifesto dos sessenta (assinado no meio do século XIX ee pedindo uma representação operária). A luta pelo progresso da representação não acabou, ela permanece em várias frentes: representação das mulheres, dos operários, dos empregados, dos jovens, das minorias. No final deste caminho, parece estar a antiga figura de uma sociedade de corpo, e este é um desafio considerável. Além disso, constata-se que, em França, são mais os movimentos conservadores ou reacionários como Ação real (Action royale) ou o Movimento para a França (Mouvement pour la France), marginais, que apoiam o estabelecimento de uma representação sócio-professional no Parlamento.

Hoje em dia, a classe política tem certa dificuldade em se livrar do discurso universalisto herdado do monismo revolucionário, retomado a partir dos anos 1980, as possibilidades de alternância entre esquerda e direita tendo obrigado os políticos a reunir mais amplamente do que antes, o que o discurso « ao povo » permitiu.

Teoricamente então, estamos lidando com um sistema de « democracia representativa », que Rosanvallon caracterizava de « economia geral da representação », que foi criada, não de uma só vez, mas ao longo de um processo político longo de dois ou três séculos em França e na maioria dos países europeus. Os elementos de equilíbrio complicaram o modelo revolucionário original, pluralizando-lo, mas foi necessário e participa modestamente de alguns progressos da representação, pois o povo é complexo. Enquanto ele ameaça o poder, o povo sempre tem essa virtude de legitimá-lo. São ai duas faces que só a História permite explicar. O trabalho de representação ainda não está acabado no entanto, e provavelmente nunca o será, apesar de todas as experimentações possíveis que constatamos hoje, por exemplo o « regime dos sondagens », as experiências de democracia direta – que analisaremos num próximo capítulo –, o desenvolvimento das eleições primárias (abertas ou não aos não membros) em interno dos partidos, etc. Pois o povo, especialmente num mundo onde a mobilidade é cada vez mais frequente, continua realmente muito evasivo, difícil a definir. E pode muito bem, é o mais provável, permanecer assim.

Para acessar a terceira parte deste artigo: Estamos em democracia? (3/3) A necessidade de mecanismos participativos vinculativos

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