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O acendedor de lampiões

A crise na Ucrânia: o retorno do Império russo?

2 Octobre 2017 , Rédigé par Jorge Brites Publié dans #Europa, #História

A Rússia encontrou-se em 2014 no centro da atualidade internacional, após a destituição do presidente ucraniano Viktor Ianukovich pelo Parlamento de Kiev. A província da Crimeia, onde encontra-se a principal base naval russa do mar Negro, foi objeto de muitas tensões: o exército russo jogou fora de lá as tropas ucranianas, em menos de três semanas. Sobretudo, o presidente russo Vladimir Putin assinou com os dirigentes daquela região um acordo histórico de anexão, dois dias após o referendo (contestado) do 16 de Março de 2014, o qual deu 96,77% dos votos a favor do retorno na Federação russa (83,1% de participação). Após esta violação do princípio de direito internacional de intangibilidade das fronteiras (uti possidetis juris), a Ucrânia olhou na sua fronteira oriental com receios, ainda mais porque a Rússia tinha concentrado lá muitas tropas, até 100 000 homens segundo Kiev, uns 40 000 segundo Moscovo. Muitos têm medo de ver o cenário da Crimeia repetir-se nas províncias do Sud e do Leste, com simplestemente uma divisão da Ucrânia.

Neste contexto, que lembra tanto a subida dos nacionalismos nos séculos XIX e XX, como também o clima tenso da Guerra Fria, convem questionar o lugar da Rússia e o seu estatuto revindicado de potência, ne Europa e no mundo. Desde 1992, após a queda da URSS, o então presidente da Comissão Europeia Jacques Delors perguntava o seguinte, num livro chamado O novo concerto europeu: « Onde por esta Rússia ou esta União pós-Soviética, que pertence à Europa e a um outro mundo? » Uns elementos de resposta.

Começamos com elementos muitos fatuais: a Rússia estende-se sobre dois continentos, a Europa e a Ásia; ela tem no seu territória muitas civilizações e povos diferentes. País cristão ortodoxo (embora é oficialmente secular), conta no entanto uma grande componente muçulmana (entre 8 e 15%, ou seja, entre 11 e 22 milhões de pessoas), e até budista (2%). A Rússia tem a particularidade de ser um país com maioria demográfica europeia (de tipo « caucasiano »), mas estende-se por 75% na Ásia. Por lembrança, as fronteiras atuais da Europa só foram definidas no século XVII (por cartógrafos russos!), com base um pedido do czar Pedro o Grande, o qual queria consolidar o caráter europeu do Império russo – a fundação de São-Petersburgo, capital aberta no mar Báltico e baptizada com um nome germánico, respondia de fato ao mesmo objetivo. Globalmente, a mitologia nacional russo do século XIX, que tem por base parcialmente a epopeia da conquista siberiana (uma forma de « mito da fronteira », versão cossaca), imprimiu-se de forma durável na identidade russa e na representação dela mesma. Claro, traduziu-se fortamente nos seus projetos e guerras de expansão, muitas vezes inspirados por uma « missão » particular que cabendo à nação russa – entre o pan-eslavismo e a era soviética, passando pela ideia de « cruzada » contra os Otomanos para conquistar a cidade santa de Constantinopla, berço da ortodoxia cristã. Incontestavelmente, a Rússia tem, pela história, as ambições, o território e os recursos desse país, um lugar particular no mundo eurasiático. Ela é e sempre foi numa postura autónoma e de oposição em relação à União Europeia e à Aliança atlântica, procurando constituir a cerca dela um conjunto político e económico completo, um sistema em si permitindo-lhe preservar a potência, como também a independência e a segurança. Contudo, a Rússia é historicamente partilhada entre duas concepções da sua própria identidade, entre defendedores de uma Rússia europeia (Pedro o Grande foi um dos primeiros a levar esta postura) e promotores de uma Rússia eurasiática (na qual o cossaco é a figura emblemática). Em 30 de Outubro de 2005, Vladimir Putin, então presidente da República, declarou: « Nós não levamos atualmente a questão da adesão da Rússia à União europeia. As circonstâncias são muitas que fazem que esta decisão ainda não é madura. A Rússia sempre sentiu-se, sente-se sempre uma parte orgánica da Europa. Atualmente, a Rússia, do ponto de vista político, económico e cultural, considera-se como parte orgánica da Grande Europa. »

A Rússia é portanto esquartejada entre um destino europeu que ela nunca deixou de revindicar mas que é adiado, e as oportunidades geopolíticas e económicas ligadas à Ásia (em particular a China), uma união estreita com certos antigos membros do espaço soviético, ou ainda a oportunidade de alianças com regimes marginalizados pelos Estados-Unidos de América e os seus aliados. A Rússia tenta, desde a perda de influência consecutiva à queda da União Soviética, de fazer renascer a sua vocação inter-continental. Base-se para iso numa participação ativa a muitas organizações regionais.

A primeira, a Comunidade dos Estados Independantes (CEI), tem a vocação desde 1991 de reunir a cerca da Rússia os antigos membros da URSS. Contudo, além dos seus resultados fracos em termos de integração económica, a CEI não conseguiu estabelecer uma cooperação em política estrangeira e a criar um sistema de segurança coletiva. O nascimento em 1992 da Organização do tratado de segurança coletiva, o qual reune a Rússia, o Bielorrússia, a Arménia, o Cazaquistão, o Quirguizistão e o Tajiquistão, não tem muito mais sucesso e não suscita a unanimidade do lado da CEI; de fato, esta organização intervem sobretudo para servir os interesses em favor da Rússia na região. Em 4 de Outubro de 2011, e de novo em 29 de Fevereiro de 2012, Vladimir Putin teorizou esta abordagem inter-continental que pretende levar a Rússia, pronunciando-se em favor de uma « união eurasiana », a qual, sem substituir-se à ex-União Soviética, reuniria à volta de Moscovo o essencial dos paises da sua « vizinhança próxima ». Uma União Económica Eurasiática foi finalmente criada em 2014-2015, voltaremos nisso no final do artigo.

De forma mais global, observa-se atualmente que em toda a Ásia que a Rússia procura aliados. A China primeiramente, com a qual ela resolveu os seus litígios no âmbito da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) – formalmente criada em 2001 pela Rússia, a China e quatro das cinco repúblicas da Ásia central, mas que existia já antes desde 1996. A OCX tem de fato permitido a asssinatura de acordos sobre a intangibilidade das fronteiras, e em 1997 sobre a fundação de forças armadas às fronteiras, e mais tarde sobre medidas de confiança militar. Sobretudo, constata-se que a China é, hoje em dia, um próximo aliado da Rússia em muitos assuntos e partilha com ela uma profunda desconfiança em relação ao apoio ocidental às revoluções « coloridas » no antigo bloco de Leste e aos movimentos de protesto da Primavera árabe. Os dois paises formaram uma forma de aliança, de fato, no Conselho de Segurança da ONU (que achou a sua tradução concreta desde 2011 nos vetos conjuntos contra as sancções internacionais visando o regime siriano), e a China tem medo para ela própria, tal como a Rússia, de um cerco gradual de pequenos paises hostis apoiados pelos Estados-Unidos.

Em termos de retórica « identitária », a diplomacia russa mudou de tom nos últimos anos. A pesar de uma reafirmação frequente da dimensão cristã da identitade russa e da sua aproximação com a Igreja ortodoxa, Vladimir Putin declara cada vez mais que o islão faz parte da Rússia, da sua história, da sua civilização, e até inspirou-se disso para motivar uma política ativa no Médio Oriente. O objetivo é óbvio: garantir a paz civil entre comunidades étnicas e religiosas na Rússia, na qual a população muçulmana é a única que conhece um crescimento demográfico. A Rússia desenvolve também relações mais pacíficas com potências regionais como a Índia e o Japão. Assumindo-se como um dos grandes paises asiáticos, incluindo uma parte « muçulmana » ao lado da sua identitade cristã, o regime russo parece inspirado pelas ideias desenvolvidas nas primeiras decádas do século XX pelos inventores do conceito de eurasismo, os quais insistiam na dualidade desta « única potência eurasiática », mediadora natural entre a Europa e a Ásia, entre o Ocidente e o Oriente.

A crise na Ucrânia: o retorno do Império russo?

A volta da Rússia no palco internacional

Segundo o professor de ciência política francês Frédéric Charillon, o qual exprimiu-se no website especializado nas relações internacionais Global Brief, a crise ucraniana « confirma […] o fim de uma ilusão europeia segundo a qual os conflitos "à antiga" (invasão de um Estado por um outro) seriam defenitivamente a excluir na vizinhança estratégica da UE ». Para o pesquizador, uma das questões cruciais é saber se a crise é o « sintoma típico de uma prática da Realpolitik ilustrando uma estratégia perfeitamente controlada de jogador de xadrez (da parte de Vladimir Putin), ou pelo contrário, de uma perda de controlo ligada a uma deriva autoritária ». Ele acrescenta que « para Putin, as consequências de perder a base ultrapassam por muito os efeitos das sanções e dos confrontos políticos ». Ainda mais, por causa da dependência energética que ela entretem com o gás russo, a Europa não poderá adoptar sanções demais importantes, por medo de ver a Rússia fechar a torneira.

O cenário em curso na Ucrânia lembra, claro, o conflito entre a Rússia e a Geórgia em Agosto de 2008, no qual o governo de Tbilissi tinha tentado retomar por força os dois territórios secessionistas, ou seja, a Ossétia do Sul e a Abecásia, os quais desde então proclamaram as suas independências e colocaram-se sob a proteção militar da Rússia – uma situação fatual não reconhecida pela comunidade internacional. Hoje de novo, uma anexão de províncias ucranianas leva o risco de criar um novo conflito gelado, numa região que não falta de conflitos desse tipo. Nos dois casos, na Geórgia como na Ucrânia, as tensões têm sido o resultado de um braço de ferro entre um lado nacionalista que procura emancipar-se da dominação de Moscou, e um lado mais próximo da Rússia, que guarda a vontade de manter uma forte colaboração política, económica e cultural com o vizinho. O primeiro apoio-se naturalmente num aproximamente com os Estados Unidos da América e a Aliança atlântica ao nível militar, e com a União Europeia ao nível económica e comercial – a perspectiva de uma adesão à UE significa, do seu ponto de vista, prosperidade económica, democracia e fim da corrupção. Do outro lado, é privilegiado uma cooperação fortalecida com a Rússia, que deve tomar medidas para garantir a sua proteção, e até a sua integração económica: distribuir passaportes russos, promover o uso da língua russa, autorizar o estacionamento de tropas russas, aderir ao projeto de união aduaneira que tem como alvo integrar as antigas repúblicas socialistas soviéticas (Bielorrússia, Arménia, Cazaquistão...) a cerca da Rússia.

Todos os meios à disposição de Moscou, políticos como económicos, são usados há anos para dissuadir os vizinhos de aproximar-se da União Europeia: à chantagem sobre os territórios secessionistas ocupados pelas tropas russas, acrescentam-se o bloqueio sobre o vinho georgiano ou moldavo e sobre o chocolate ucraniano, o aumento do preço do gás vendido à Ucrânia, as ameaças sobre as maçãs polonesas, ou a descoberta de problemas de higiena no leito lituaniano ou bielorusso... Em Novembro de 2013, graças às pressões económicas, os Russos dissuadiram a Arménia e a Ucrânia de assinar um acordo de associação com Bruxelas – foi, em Kiev, o elemento que provocou o movimento de protestação na praça de Maïdan. Só dois dos quatro países previstos, a Geórgia e a Moldávia, assinaram finalmente um tal acordo com a UE, e o novo poder ucraniano iniciou desde 2014 o mesmo processo. Após a queda do presidente Ianukovitch, a Ucrânia assinou finalmente um tal acordo em 21 de Março de 2014, o qual tornou-se efetivo em 2016-2017.

Paramos um instante nos elementos fatuais que fazem da Rússia,hoje em dia, uma potência regional e mundial. Muitos elementos de respostas nos vêm naturalmente: povoada por mais de 140 milhões de habitantes, a Rússia permanece o maior país do mundo, herança de um império plurisecular que faz dela um ator político, económico e militar de peso na Europa e na Ásia. Sobretudo, a Sibéria e o Cáucaso (e provavelmente num futuro próximo o Ártico) fazem dela uma potência energética significativa: primeiro produtor mundial de gás e segundo de petróleo (após Arábia saudita), o país tem entre 7,5 e 15% das reservas de ouro preto e entre 27 e 40% das de gás natural. A Rússia aparece portanto como um fornecedor incontornável, não só para uma Europa que possui menos recursos naturais e que deseja sair da dependência à Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), mas também para potências regionais ou mundiais emergentes (China, Índia, Tailândia, Vietnã, etc.) cuja demanda será, amanhã, dificilmente satisfeita pelos únicos fornecedores do Médio Oriente ou da Ásia do Sul-Este.

A Rússia é o terceiro parceiro comercial da União Europeia, por trás dos Estados-Unidos e da China. Hoje em dia, mais ou menos 20% do petróleo e mais de 25% do gás natural consumidos pela União Europeia vêm do território russo. Estes valores variam muito de um país para outro: enquanto a França fornece-se com a Rússia apenas para mais ou menos 15% das suas importações, esta proporção é multiplicada por dois para a Alemanha, por quatro para a Áustria, por sete para a Polónia, e atinge 100% para a Estónia e a Finlândia. O desafio é enorme, no plano económico mas também geopolítico. Porque com um fornecedor tão incontornável como a Rússia, os países membros da União Europeia querem garantias sobre a importação energétice, e jogam portanto ao máximo a carta da paz, como foi o caso durante a crise russo-ucraniana sobre os preços do gás que tinha visto cortas desacelerar os abastecimentos em Janeiro de 2009. Nesta parte de xadrez, a Rússia pretende naturalmente permanecer um parceiro energético importante dos países da União Europria, pelo menos a curto e médio termo, e portanto sempre afirmou uma oposição clara aos projetos de abastecimento energético alternativos (por exemplo o projeto europeu de gasoduto Nabucco, deixado de lado ao benefício do projet South Stream levado pela Rússia).

Outro fator de potência: a Rússia é o Estado continuador da URSS, e como tal conservou muitas das suas prerogativas. Entretem muitas bases militares no estrangeiro, a maioria nas antigas repúblicas da União Soviética e na Síria. Permanece com um lugar permanente no Conselho de segurança da ONU e continua detendo um arsenal nuclear (o mais importante do mundo com mais de 16 000 cabeças nucleares, entre as quais 3 500 são operacionais). A Rússia é um dos cinco países reconhecidos oficialmente pelo Tratado de Não Proliferação das armas nucleares (TNP) como possuindo a arma nuclear. Desde a queda da URSS, e apesar de uma diminuição dos seus efetivos e do seu orçamento, o exército russo permaneceu um exército de primeiro plano à escala mundial, com mais de 1 140 000 militares (e dois milhões de reservistas) e um orçamento ultrapassando os 70 bilhões de d>lares em 2008. Triste performance, a Rússia é também lider das exportações de armas com um excedente entre 7 e 8 bilhões de dólares, levados pelo setor das armas – os seus principais clientes sendo a China e a Índia, e a seguir o Irão, a Venezuela e a Argélia.

Moscou, de forma assumida, base a sua potência na força militar. Ela investiu para isso um grande esforço de fortalecimento e de modernização do seu aparelho de segurança e de defesa. A sua doutrina militar é herdada da reforma do Exército vermelho do fim da década de 1920: um exército popular permanente destinado a proteger o país das agressões exteriores. Contudo, esta doutrina é em curso de revisão há mais ou menos dez anos sob a autoridade do general Mahmut Gareev. Logicamente, as ameaças já não são as tropas « brancas » ou contra-revolucionárias, nem o exército alemão, mas: (i) a instabilidade de certos Estados da sua vizinhaça que conhecem conflitos étnicos, e (ii) o aventureirismo militar dos Estados Unidos da América, à procura de recursos energéticos e de oportunidades comerciais. Nesta perspetiva, as forças armadas devem ser capazes, não só de defender a pátria, como também de ter um peso no mundo como árbitro geopolítico, evitando qualquer confronto direto com os Estados Unidos. O exército russo é portanto estruturalmente no hora de uma modernização pela profissionalização do seu contigente, e por via de consequência num processo de diminuição global dos seus efetivos. Contando entre 4 e 5,3 milhões de soldados e oficiais na década de 1980, passou a 2,1 milhões em 1994, 850 000 en 2003 e 1 027 000 en 2006. Em 2007, 50% dos sargentos e recrutas eram professionalizados. Esta reforma aplica-se também na organização das academias militares: de 74 escolas em 2004, passou-se a 57 apenas em 2008, com uma tendência à especialização para reter os jovens oficiais. Em paralelo, os esforços orçamentais são importantes: em 2012, uns dias antes da eleição presidencial do 4 de Março, Vladimir Putin (então Primeiro ministro) anunciou um ampla plano de modernização das forças armadas russas, com mais de 500 bilhões de euros na década a vir. O orçamento de 2013 era de 2 346 bilhões de rublos (quase 59 bilhões de euros), ou seja, um aumento de 25,8% em comparação com o de 2012. O aumento foi depois de 18,2% em 2014 e de 3,4% em 2015. Em 2014, a Rússia tinha aumentado por 50% as suas despesas de segurança – elas baixaram por 20% em média nos países da OTAN, por causa entre outras coisas da crise das dívidas públicas. Os Georgianos sofreram a fatura do ressurgimento russo em Agosto de 2008, isso apesar da assistência de expertos norte-americanos: a imagem que colava à pele do exército russo após os seus fracassos na Chechénia na década de 1990, de um exército de bêbedos e mal equipada, pertence ao passado.

De forma geral, o que chamou-se certo tempo o « rolo compressor » encontrou-se fortalecido na última década: em termos económicos com o aumento dos preços dos hidrocarbonetos – contínua há anos, com excepção uma breve acalmia em 2008 – e no plano geopolítico por uma diplomacia ativa na Europa como na Ásia próxima e extreme-oriental. Em Agosto de 2008, a ofensiva rápida conduzida na Geórgia confirmou, tal como a ocupação da Crimeia desde Fevereiro de 2014, e as operações conduzidas com sucesso na Síria (um teatro de operação muito longe das suas fronteiras) desde Setembro de 2015, confirmou a capacidade de projeção da Rússia na sua vizinhança próxima e além, e a sua superioridade militar incontestável sobre os seus vizinhos. Desmostra igualmente a quem duvidava ainda disso, que Moscou não aceitará ver a sua área de influência reduzir-se sem reagir, e que ainda tem os meios das suas ambições regionais.

Outro exemplo choquante e ilustrativo da vontade russa de manter o seu estatuto de potência: a corrida ao Pólo Norte, na qual a Rússia tomou avanço em 2014, quando enviou dez navios de guerra e quatro quebra-gelos a propulsão nuclear manobrar o Árctico, onde os recursos de petróleo são estimados a 90 bilhões de barril e onde seriam localizados 30% das reservas em gás. Já em 2007, Artur Xilingarov, deputado na Duma, próximo de Vladimir Putin mas também explorador polar, tinho posto a bandeira russa a 4 km no fundo do Árctico. Uma referência à bandeira norte-americana plantada na Lua em 1969, que tinha naquela altura simbolizava o sucesso dos Estados Unidos na corrida tecnológica e espacial. Mas esses símbolos não devem nos deixar cegos sobre as capacidades da Rússia a ter peso no plano internacional: com a preocupação de defender os seus interesses na vizinhança próxima, ela preconiza antes de tudo (e abertamente) a criação de um mundo multipolar, onde as potências equilibrem-se, ficando cada uma mestre (por diferentes meios, inclusivo a força) da sua área de influência respetiva.

A crise na Ucrânia: o retorno do Império russo?

A vitória dos paradigmas classícos da potência

O regime russo pretende agir sobre todas as ferramentas de pôtencia possíveis para impor o seu estatuto na cena internacional. Ao contrário do que muitos jornalistas, sempre pouco relevantes logo que se trata de fazer comparações históricas, afirmaram, a intervenção na Crimeia não constitui um retorno à Guerra Fria. Vladimir Putin é nostálgico de Estaline, isso é um fato, e bem verdade que ele qualificou a queda da URSS de « maiora catástrofa do século XX ». Os regretos do presidente russo não têm tanto a ver com a ideologia comunista ou ainda sobre a personalidade do Pai dos Povos, mais sobre a perda de potência da nação russa desde as décadas de 80 e 90. Vladimir Putin serve-se das armas à sua disposição para preservar a sua autoridade e os interesses da Rússia na sua área de influência tradicional, e para falar à igualidade com as outras potências desse mundo. De uma certa forma, a Rússia volta mais a uma estratégia diplomática e militar já observada no século XIX, baseada na solidaridade com pequenos Estados aliados (Sérvia, Síria...) e numa rede de alianças mais ampla e mais flexível (com o Venezuela, o Irão, a China...), do que a uma lógica de dois blocos mundiais, que todavia a Rússia não tem os meios de assumir.

Nesta grelha de análisa, entende-se bem que o alargamento da esfera euro-atlântica conduz a uma subida das tensões com a potência russa (e os seus aliados). Os motivos de desacordos com o casal Bruxelas/Washington são muitos: alargamentos da União Europeia e da OTAN na Europa de Leste desde 1999, revoluções « coloridas » democráticas e europeias na sua vizinhança próxima, discussões vivas sobre o gás com Kiev em Janeiro de 2006 e em Março de 2008, proclamação de independência do Kosovo em 2008, recuso da Rússia de assinar a Carta Europeia da Energia, projetos energéticos com alvo achar alternativas à importação de gás russo, etc. O retiramento russo, em 12 de Dezembro de 2007, do Tratado sobre as forças convencionais na Europa (assinado em 1990 e reatualizado em 2004) e o amplo projeto de escudo anti-mísseis norte-americano na Romênia e na Polónia em 2016, confirmaram o risco de escalada (conteudo pela dissuasão nuclear). Outro exemplo: em Maio e em Dezembro de 2007, o exército russo testou o RS-24, um míssil balístico intercontinental capaz de levar com ele pelo menos agivas nucleares e que poderia escapar a um escudo anti-míssil similar ao instalado pelos Americanos na Europa central.

No contexto de retorno dos paradigmas clássicos da potência, o Kremlin pretende desenvolver a sua rede de alianças e aproximou-se esses últimos anos, para isso, de atores controversos da cena internacional. O Irão primeiramente, primeiro alvo da diplomacia russo. Aliás, Teerão sempre permaneceu silencioso sobre a questão chechena, e esta neutralidade benevolente favoreceu o desenvolvimento sdas trocas entre os dois países e uma cooperação ativa no setor nuclear, em particular com a construção da central de Bouchehr finalmente inaugurada em Setembro de 2011. Podemos também mencionar o aproximamento da Rússia, na década de 2000, com o Hamas palestiniano, o Hezbolla libanês, a Coreia do Norte, a Venezuela ou ainda a Síria, todos em conflito com Washington e Bruxelas mas a quem ela fornece armas e financiamentos. Em Novembro de 2008 por exemplo, a frota militar russa operou manobras conjuntas com a da Venezuela, cujo primeiro vendedor de armas é Moscou. Na mesma altura, o regime libiano de Muamar Kadafi assinou com Moscou um acordo de cooperação no nuclear civil e comprou armas russas, evocando até a possibilidade de permitir a longo prazo os Russos a implementar uma base naval no seu território. Outro elemento revelador: e:m 22 de Abril de 2012 e durante uns seis dias, as frotas militares russas e chinesas, numa desmostração de força inedita, realizaram manobras conjuntas perto das costas chinesas, num contexto de tensão entre Beijing e os seus vizinhos asiáticos por causa das suas revindicações territoriais.

Em muitos aspetos, o conflito siriano é igualmente ilustrativo da orientação diplomática russa. O Kremlin é antes de tudo numa estratégia de defesa dos seus interesses na região, o qual implica a preservação de um aliado chave: o regime de Bachar el-Assad que assuma um papel determinante de ligação entre o aliado iraniano e o Hezbola libanês (os dois são envolvidos no conflito). Tendo entendido a lição da intervenção aeronaval na Líbia em 2011, onde a OTAN ultrapassou as suas prerogativas até favorecer a queda de Kadafi, Vladimir Putin pretende agora salveguardar esse pilar da política média-oriental russa. Com três vetos sucessivos contra as sanções da ONU contra Damasco (em Outubro de 2011, e em Fevereiro e Julho de 2012), fornecendo-lhe armas em grande quantidade e assumindo o papel de mediator na crise das armas chímicas em Setembro de 2013, a Rússia tornou-se, mais do que um apoio, o garante da sobrevivência do regime siriano. Este apoio teve o seu ponto alto em Setembro de 2015, quando iniciou-se uma intervenção direta do exército russo no território siriano, para ajudar o governo de Bachar el-Assad a reconquistar as áreas controladas pelos rebeldes, em particular as dominadas pelos grupos islâmicos ligados à Turquia e os do Exército Siriano Livre (ESL). Sem ser uma base russa, o porto de Tartus tornou-se o porto de estacionamento da frota russa. O auge da intervenção russa está em curso: em paralele da conquista atual da cidade de Raqqa pelos Curdos e os seus aliados árabes (apoiados pelos Estados Unidos), o regime conquistará nas proximas semanas a cidade oriental de Deir-Ezzor e a margem direita do rio Eufrates. Isso, menos de um ano após a reconquista total da cidade de Alepo pelo regime, em Dezembro de 2016, com o apoio dos Russos, e ao custo da demolicação de uma grande parte da metrópole.

Esta atividade diplomática e militar é reveladora do fato que a Rússia é ainda um ator com peso na sua vizinhança, pelo menos na Europa de Leste e no Médio Oriente, onde as potências com peso similar são raras. Mas os seus argumentos, nos seus vizinhos mais próximos, são antes de tudo baseados numa forma de pressão (económica, energética ou militar). Uma tendência que pode surpreender, numa altura na qual o paradigma diminando nas relações internacionais tornava-se, pelo menos em teoria, a orientar-se na instauração de um sistema coletivo no qual o direito internacional prevalece na força. Mas num tal sistema (embora permanece muito fraco), onde aquele que ultrapassa o direito perde qualquer legitimidade nas suas ações (era também o caso para os Estados Unidos no Vietnã e no Iraque), convem interessar-se a outros fatores de potência.

Pois, verdade que a Rússia permanece uma potência militar de peso e o primeiro fornecedor da Europa em energia, porém é igualmente verdade que num mundo no qual o fator económico domina, o paós já não tem o mesmo peso do que na época da União Soviética. A economia russa é uma economia em transição, ainda marcada pela herança soviética e que não deixa de ser uma economia rentista maioritariamente fechada na extração de recursos naturais, após o colapso da produção industrial. Sofra, aliás, de uma envelhecimento da população, por desequilibros demográficos aparecidos já antes do fim da época soviética, e o país conhece um forte declíno da sua população há mais de duas décadas, causado por parte pela emigração, a queda da natalidade, o aumento da mortalidade ligada ao álcool. A transição da economie russa, marcada pela terrível crise económica e social da década de 1990, acompanhou-se da pauperização de uma parte da população, ao benefício de uma minoria próxima do poder que aproveitou amplamente da privatização da economia. Enfim, podemos acrescentar, nos problemas da Rússia de hoje, a corrupção generalizada, o tráfego de seres humanos, a subida do nacionalismo, os riscos ligados ao terrorismo no Norte-Cáucaso, como também os laços ocultos entre oligarquias industriais e poderes político, judiciário e mediático. Tantos problemas que enfraquecem, claro, o seu estatuto de potência e a sua capacidade de resilência diante de eventuais crises exteriores.

A crise na Ucrânia: o retorno do Império russo?

A Ucrânia: um espaço vital para a Rússia e um símbolo para os Russos

A olhar nas suas muitas fraquezas, podemos legitimamente questionar-nos: será que a Rússia tem os meios do braço de ferro iniciado há um pouco mais de três anos com a Europa e os Estados Unidos da América? Desde os eventos de Fevereiro e Março de 2014, os mercados financeiros russos manifestaram uma certa preocupação sobre as consequências das sanções internacionais na economia da Rússia. Os índices bolsistas moscovitas conhecerem naquele ano uma forte queda, tal como o rublo perdeu muito do seu valor, em relação ao euro e ao dólar, motivando o Banco Central russo a um aumento da sua taxa diretora. Além disso, certamente a Europa permanece muito dependante da Rússia para o seu abastecimento energético, mas é igualmente verdade que a venda de matérias brutas (hidrocarbonetos, metais, etc.) à União Europeia representa o essencial da moeda estrangeira detida pela Rússia e contribui a mais de 40% do seu orçamento federal. Dito de uma outra maneira, a Rússia não tem os meios das suas ambições. A UE permanece, por muito longe, o primeiro parceiro económico de Moscou.

Claramento, as sanções internacionais não respondam aos desafios. Após a anexão oficial da província da Crimeia na Federação russa – ratificada pela câmara baixa do Parlamento russo em 20 de Março de 2014 –, os Ocidentais limitaram-se a muitas palavras, e a medidas insuficientes. De fato, eles adoptaram sanções contra a economia russa, mas em que consistirem elas? No próprio dia da assinatura do ato de anexão da Crimeia, Barack Obama anunciou sanções contra vinte personalidades importantes du regime russo, que acrescentaram-se aos onze já afetadas numa primeira lista. Em paralele, a União Europeia alargou igualmente a mais uma dúzia de pessoas a sua lista de 21 personalidades russas e ucranianas proibidas de visto de viajem e cujos bens no extranjeiro foram gelados. A Rússia respondeu a esse novo pacoto de sanções, publicando a sua própria lista de pessoas indesiráveis no seu chão (entre os quais nove responsáveis políticos norte-americanos).

De fato, nem os Estados Unidos da América, nem os Europeus são prontos a enviar os seus exércitos defender a integridade territorial da Ucrânia. Em 1959 e em 1961, quando s ni les Européens ne sont prêts à envoyer leurs armées défendre l’intégrité territoriale de l’Ukraine. En 1959 et en 1961, lorsque Khrushchev ameaçou ocupar Berlim-Oeste, os presidentes norte-americanos Eisenhower e Kennedy não cederem, embora eles não tinham então as forças operacionais para opor-se a isto, porque Berlim era um símbolo xchave da Guerra Fria e o refúgio de milhões de pessoas ao qual os Estados Unidos tinham prometido proteção. Os dois dirigentes norte-americanos até declararam-se prontos a usar da arma atómica para defenser Berlim-Oeste – Khrushchev acreditou, provavelmente com razão, pois Kennedy tinha pedido um estudo segredo para saber se um primeiro ataque nuclear contra alvos militaires soviéticos era possível. Mas a Ucrânia não é, definitivamente, Berlim-Oeste, e não tem o mesmo valor aos olhos de Washington, na hora em que a Ásia torna-se o espaço de desafios muito mais essenciais à segurança norte-americana. Se até George W. Bush na sua altura recusou (ou não permitiu, pelo menos) o pedido de integração da Ucrânia na OTAN? é porque uma total oposição com a Rússia não justificava-se. Ainda mais porque a entrada da Ucrânia na Aliança atlântica não é uma coisa qualquer, tendo em conta que um ataque contra um dos membros é teoricamente percebida como um ataque contra todos os outros.

Sobretudo, a Ucrânia é muito mais importante para a Rússia do que para qualquer um dos países ocidentais. Para muitos Russos, a Ucrânia é à Rússia o que Taiwan é à China, ou o que o Kosovo era ontem à Sérvia: uma questão existencial sobre o qual as linhas não devem mexer-se. Para a Rússia, a Ucrânia é o lugar de nascimento da civilização russa, e a própria ideia que a Ucrânia é um Estado independente seguindo a linha diplomática do Ocidente é um anátema, do ponto de vista de Putin. Enquanto a Ucrânia fica do seu lado, a Rússia permanece um império, não um país como os outros. E ser mal visto pela comunidade internacional, é preciso ser lúcido: o presidente russo não se importe, e isso não é nada ao lado de uma eventual perda pura e simples da Ucrânia, que não deixa de ser provavelmente, para ele, um espaço naturalmente ligado à nação russa, um protetorado legítimo, ou até um país russo por definição. Não se trata portanto de afirmar a hegemonia russa, mas de preservar a herança secular e de recuperar o coração histórico da pátria, para a honra da Santa Rússia (a palavra « Santa » não refere-se aqui tanto à religião, mas mais à uma sacralização de fato da nação russa). Sem esquecer o símbolo representado pela Crimeia para muitos Russos no plano histórico, político e militar. Aliás, a Ucrânia constitui um mercado vital, um fornecedor de produtos manufacturados e um espaço « tampão » entre a Rússia e o Ocidente. Pode-se então deduzir que Putin está pronto a tomar riscos importantes para evitar o cenário de uma saida da Ucrânia da sua área sde influência. Nesta perspetiva, Barack Obama cometeu provavelmente um erro táctico quando pretendeu impor uma nova « linha vermelha » (a intervenção direta) que a Rússia pode de qualquer jeito ignorar tanto como quer, pois nenhuma ação realmente ameaçante nunca foi conduzida.

A crise na Ucrânia: o retorno do Império russo?

A crise na Ucrânia: reveladora da fragilidade do « Império »

Nos meses que seguiram a secessão da Crimeia e das repúblicas do Donbass, a Rússia e os seus supletivos multiplicaram as desmostrações de força na Ucrânia. Tomaram o controlo de muitos sites militares ucranianos da Crimeia, de navios e de um submarino ucraniano, e Kiev teve que evacuar as suas últimas tropas da península. Para o antigo membro do departamento de Estado norte-americano Josh Cohen, mencionado no Moscow Times, « Putin não vai parar às fronteiras da Crimeia » e as cidades de Donetsk e de Larkhov, na parte Leste da Ucrânia, serão provavelmente as próximas etapas. Nas provocações russas, a Europa vê tanto as ambições imperiais de Moscou como também os métodos de Vladimir Putin, o qual não parece ter medo de uma escalada da violência. Contudo, perguntas surgem: será que o poder tem realmente interesse a esta situação, que parece ir de maneira inevitável a um novo conflito gelado como já existêm outros na região (Kosovo, Alto Karabakh, Transnístria, Abcásia, Ossétia do Sul... enfim, um estado de fato mas não de direito)? Será que a reação de Moscou após os eventos de Maidan e a queda do presidente Ianukovitch responde a um processo pensado, a um projeto de expansão, ou será que, pelo contrário, é o sinal de fraqueza diante de eventos não controlados?

Estamos provavelmente longe de uma iniciativa planificada há muito tempo e bem construida: em Novembro de 2013, a Rússia lançou uma ofensiva econúmica e diplomática decisiva com alvo incluir a Ucrânia no projeto de união aduaneira. Desde 2014, a virada do Parlamento ucraniano, agora em maioria oposta à dominação de Moscou, constitui incontestavelmente uma humilhação para Putin, o qual deve mostrar os seus meios militares para provar que ainda tem cartas neste jogo. Há anos, a Rússia receia para os seus interesses vitais, e a sua própria incapacidade a os garantir de maneira sustentável não conforta a sua posição, inclusivo na década de 2000 quando Vladimir Putin já era no poder: os alargamentos da OTAN de 1999, 2004, 2009 e 2017, que diz respeito a doze países ex-comunistas (entre os quais os três Estados bálticos), a instalação de bases militares norte-americanos na Ásia central no contexto da invasão do Afeganistão, ou ainda o aproximamento da Géorgia e da Ucrânia com o bloco euro-atlântico, são exemplos marcantes. Num tal contexto, é preciso entender a Rússia a través os seus receios. Não é questão de minimizar os riscos políticos ligados às intervenções russes na Ucrânia em 2014, mas é necessário realizar em que medida, de forma diferente em relação à URSS e do Império czaristo, a Rússia de hoja não age como um polo hegemónico em expansão, mas como uma potência regional em posição defensiva, que procura primeiramente e antes de tudo preservar os seus interesses com base as heranças do passado. Para Moscou, a crise ucraniana não é, portanto, nem um sucesso nem a ocasião de reinstalar-se no Leste e na Sul du país. Para os Russos, essa crise inscreve-se na continuidade de muitos revés profundamente preocupantes, embora a manobra militar na Crimeia (após a na Géorgia em 2008) pode ter parecido uma reação bem sucedida e constituiu uma nova desmostração de força.

Pode-se deduzir que a invasão da Crimeia não era, provavelmente, premeditada por Putin, e não era pensada no âmbito de uma estratégia global com alvo a dominação desta parte do mundo. Em termos de política estrangeira, o objetivo primeiro de Moscou, há anos, é a criação de uma união económica eurasiana, para balaçar a influência da União Europeia e fortalecer a sua esfera de influência. Uma União Económica Eurasiática foi finalmente criada em 1 de Janeiro de 2015, reunindo a Rússia, a Bielorrússia, e o Cazaquistão, que tinham assinado um tratado em 29 de Maio de 2014, mas também a Arménia, que o assinou em 9 de Outubro de 2014, e o Quirguizistão, em 8 de Agosto de 2015. O Tajiquistão está ainda em negociação para aderir – a esperança de ver a Ucrânia juntar-se a ela desapareceu com os eventos de 2014. Inclui uma união aduaneira e uma área de livre-comércio. Contudo, a anexão da Crimeia e o gelo do conflito no Donbass supõem provavelmente que a Ucrânia nunca integrará este projeto de união eurasiana. Quanto a comunidade russófona da Ucrânia, ela encontra-se amputada da Crimeia (a qual é russófona por 60% e povoada de mais de dois milhões de habitantes); ela perde com ela um apoio pesado e vê afastar-se para muito tempo, com as secessões no Donbass, as suas chances de reconduzir no futuro um candidato favorável à Rússia à presidência da República na Ucrânia.

A própria proposta russa de integração numa união aduaneira e, em 2015, na União Eurasiática, já constituiu iniciativas de útimo minuto para balançar a Parceria Oriental da União Europeia, entrado em Outubro de 2013 na sua última fase de elaboração com a Ucrânia: em poucas semanas, Moscou criou um plano de redução dos preços de gás, um fundo de ajuda financeira considerável e uma diminuição drástica das suas barreiras aduaneiras para evitar de ver Kiev escapar do lado ocidental, e para impedir o fracasso do seu projeto de união aduaneiro eurasiana. De fato, a Bielorrússia, a Arménia, et mesmo o Cazaquistão, não representam um peso simbólico, económico e estratégico comparável à Ucrânia. A Rússia até tinha aceitado muitas concessões, quase inaceitáveis, concedidas no final de 2013 a um parceiro contudo instável desde uma década. E agora, o simples fato que a Rússia implementa as suas tropas num espaço tão vital para a sua segurança e os seus abastecimentos, já constitui em si um sinal de destabilização e de febre.

A Rússia sabe que ela luta de costas para a parede, porque a crise na Ucrânia mexe ao essencial: a sua base naval na Crimeia, os preços e o trânsito do gás, as indústrias e as minas do Leste da Ucrânia. Para Miscou, os eventos de 2013-2014 constituiram um risco para questionar, a longo prazo, o acordo concluido em 2010 com o governo ucraniano, que prolongaram até 2042 a presença da frota russa no mar Negro. A Rússia encontra-se portanto a violar o princípio de não ingerência, enquanto ela reclamou-se dele tantas vezes no passado para defender os seus próprios aliados (Sérvia, Líbia, Síria, etc.): mais uma vez, voltamos ao paradigma tradicional da potência, o qual permite justificar uma intervenção militar para a única defesa dos seus interesses vitais. O resultado é perigoso, mas é sobretudo para a própria Rússia, a qual não tem nenhum interesse a uma subida das tensões etnolinguísticas ou a uma partição da Ucrânia: antes de tudo, a Rússia procura garantir a estabilidade das fronteiras, dos Estados e dos regimes que a rodeiam. Uma revolução geopolítica às suas portas, na sua área « vital », apresenta o risco de fazer-se ao seu custo. A perda deste aliado de 50 milhões de habitantes, Estado tampão entre ela e a Europa, e onde mantem-se uma forte minoria russófona que garante a sua influência política, económica e cultural, seria claramente enorme para a Rússia, e não seria compensada pela anexão de tal ou tel província, embora essa pode ter uma importância simbólica ou estratégica.

Mapa da situação política atual da Ucraniana.

Mapa da situação política atual da Ucraniana.

Qual saída para a crise?

Do outro lado, os Europeus interpretam de forma errada – voluntariamente ou não – as revindicações russas que escondem-se por trás das crises na Ucrânia em 2014. Aliás, os pedidos de garantias de Moscou (convem distinguir os discursos dirigidos para os Russos, que chamam o sentimento nacionalista e anti-ocidental, das revindicações diplomáticas) são bem claros, e representem linhas vermelhas a não ultrapassar: preservação da base naval na Crimeia, reabsorção do vazio do poder em Kiev, garantias políticas e linguísticas para as populações russófonas, preservação do trânsito do gás, conservação do tecido industrial e mineiro. Enfim, o Kremlin defende o statu quo para defender os seus interesses e os vestígios da sua potência declinante. Além disso, Obama poderia oferecer à Rússia a segurança que a Ucrânia não irá aderir à OTAN, e a União Europeia o rejeito de qualquer candidatura de Kiev. Esta última proposta poderia em particular ter um certo peso no balanço, pois os protestos de 2013-2014 tinham começado após a anulação por Ianukovitch das negociações do acordo de associação oficial entre a Ucrânia e a UE, Putin tendo convencido o então dirigente ucraniano com base um programa de ajuda de 15 bilhões de dólares.

Ninguém pode afirmar que, mesmo em troca de tais seguranças, o Kremlin chamaria as suas tropas para sair da Crimeia, reconheceria a destituição parlamentar de Ianukovitch e reconheceria as eleições ucranianas de 2014 (presidencial e legislativas). Um tal cenário constituiria, contudo, o melhor compromisso possível para todos os Ucranianos: ele não impede que seja preso e julgado o antigo presidente em exílio para os seus crimes e os seus atos de corrupção, e ele permitiria também que sejam levados os objetivos das revoluções de 2004 e de 2014, ou seja, a renovação da classe política ucraniana e o fim do regime autoritário marcado pelo capitalismo selvagem e mafioso que prevalece há anos (qualquer seja a maioria no poder, aliás). Em paralele, ele garante o respeito das aspirações da minoria russófona, a qual fala o russo no seu dia a dia, e quer que a língua russa fica integrada à nação ucraniana. Uma minoria que não quer necessariamente aderir às estruturas de cooperação europeias e atlânticas – não devemos esquecer que as pesquisas de opinião indicavam, ainda em 2014, que quase 40% dos Ucranianos consideravam a OTAN como uma ameaça.

Vladimir Putin está agora preso na sua própria armadilha, a qual o impede de desbloquear a situação no curto prazo: após ter qualificado a Crimeia, diante de dezenas de milhares de Russos reunidos na Praça Vermelha em Moscou, de « barco que, após uma viajem longa e doloroso, finalmente voltou no seu porto de origem », o mestre do Kremlin não pode permitir-se chamar simplesmente as suas tropas. Perderia em popularidade não só no seu país, mas também nas comunidades russófonas dos países vizinhos. Além disso, ele sabe que os Ocidentais não podem cortar totalment o laço com ele: a Rússia não é a Bielorrússia, Cuba ou a Coreia do Norte. Além do seu lugar de fornecedor da metade do gás e do petróleo europeus, permanece um ator incontornável para a resolução de muitas crises regionais, as primeiras delas sendo o conflito na Síria e o dossier do nuclear iraniano. Esta realidade impede o ostracismo total da Rússia e limita as opções de saída de crise pela via do diálogo. Ninguém dos dois lados mostra realmente uma verdadeira boa vontade de sair pacificamente deste conflito. Pois, por lembrança, sob o atual mandato do presidente da República ucraniana Petro Porochenko (antigo ministro de Iuchenko e depois de Ianukovich, eleito em Maio de 2014), foram assinados dois protocolos na cidade de Minsk, em Setembro de 2014 e em Fevereiro de 2015, por Kiev, Moscou e as duas repúblicas secessionistas do Donbass – a Crimeia não era incluida no acordo; supostos acabar com a guerra no Donbass, que já fizeram milhares de mortos, ainda não foram aplicados, e desde então, combates de baixa intensidade continuam de maneira pontual, os rebeldes apoiados pela Rússia tentando petiscando pouco a pouco novos territórios (embora eles estão longe de controlar todas as regiões de Donetsk e de Luhansk. De fato, a crise é portanto longe de ter acabada.

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